Os brasileiros têm vivenciado uma situação intrigante. Com o advento da Copa do Mundo, os olhos do planeta se voltam para cá. E que imagem este mundo tem de nós, brasileiros? Alguns mitos precisam ser problematizados, como a nossa tão ilusória “democracia racial”. A ideia de que nossas relações sociais se dão harmoniosamente no campo racial.
Algumas características marcam o racismo enquanto ideologia. Entre elas, podemos citar a animalização do outro e a naturalização das hierarquias sociais. A animalização quase sempre acontece por meio da piada, ou da chacota, e interioriza um pensamento de inferioridade deste outro. “Cada macaco no seu galho”, como diz a música e ironizou, em seu programa semanal, Fernanda Lima no contexto da sua indicação a apresentadora oficial do sorteio da Copa do Mundo, no fim do ano passado. Segundo rumores, Camila Pitanga e Lázaro Ramos (negros) teriam sido vetados pela Fifa como apresentadores do evento. A modelo e apresentadora, ao lado de seu marido, Rodrigo Hilbert (ambos loiros), teriam sido escolhidos para a substituição. Um dia após a polêmica, a música foi tema de abertura do programa semanal Amor e Sexo, da Rede Globo, no qual Fernanda Lima é apresentadora.
Outro caso de animalização da imagem do negro na mídia é o clipe da música Kong, do cantor Alexandre Pires com participação do Mister Catra e do jogador Neymar (todos negros), no qual a imagem dos protagonistas faz alusão ao macaco. Em 2012, o humorista Danilo Gentili, conhecido por suas piadas com teor racistas, numa discussão pelo Twitter com o redator Thiago Ribeiro (negro), teria dado a seguinte resposta: “Quantas bananas você quer pra deixar essa história pra lá?”
Somos todos macacos mesmo
As três situações citadas acima, no Brasil, têm seu caráter racista questionável, quando apontado como tal pelo Movimento Negro. Ou seja, o brasileiro não entende tais situações como sendo empiricamente racistas. São vistas como “brincadeira”, como no caso do comediante, ou como vitimização, nos demais casos, do movimento social. O comportamento racista do brasileiro é no mínimo curioso e requer toda atenção à sua mutabilidade quando está em jogo compreender sua atuação na sociedade brasileira.
Como já apontaram alguns teóricos, entre eles, Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2009), o racismo enquanto fenômeno social precisa ser entendido por sua historicidade. A teoria eugenista mundial, no início do século 20, abominava o cruzamento da “raça humana”, ou seja, a miscigenação. Segundo eles, tal processo causaria a degenerescência da nossa espécie. No Brasil, esta visão foi abolida, ou relativizada, já que sua população, na grande maioria, era composta por africanos ou seus descendentes. A miscigenação foi implementada como política pública pelo Estado brasileiro por meio do programa de imigração europeia (branca) com o propósito de “embranquecer” a nação.
Temos assistido, sistematicamente, a diversos episódios em que nossos jogadores de futebol têm recebido ofensas racistas (sempre com alusão ao macaco) nos campos internacionais. No entanto a problemática é dissimulada pela mídia. Uma forte mobilização pelas redes sociais se deu quando o jogador Daniel Alves, lateral do Barcelona, comeu uma banana jogada no campo quando se preparava para cobrar um escanteio, contra o Villarreal, no dia 27 de abril.
Na visão europeia, em que o racismo tem herança nas pesquisas eugenistas, os mestiços seriam seres degenerados. Sim, somos todos macacos mesmo, independentemente das nossas características físicas. Enquanto que, no Brasil, a discriminação racial está intimamente ligada aos fenótipos.
Racismo sem cara
Em situações como essas a mídia mostra seu caráter sensacionalista e oportunista. Uma campanha de apoio ao jogador, que surgiu nas redes sociais e busca “emplacar” o entendimento de que “somos todos macacos” é apoiada por diversos setores da sociedade brasileira, como artistas e políticos. A presidente Dilma Rousseff se posicionou da seguinte forma na rede Twitter: “O jogador Dani Alves deu uma resposta ousada e forte ao racismo no esporte. O Brasil na Copa das Copas levanta a bandeira do combate à discriminação racial. Vamos mostrar que nossa força, no futebol e na vida, vem da nossa diversidade étnica e dela nos orgulhamos.” Tal campanha não foi se quer aludida quando, no sorteio dessa mesma Copa, a Fifa vetou aqueles que mostrariam a real cara mestiça do povo brasileiro.
Essa imagem animalizada do sujeito negro, que o desumaniza, tem sido uma das frentes de batalha do Movimento Negro nacional. Porque este racismo no Brasil mata, e mata a juventude negra. O levantamento realizado pelo Ipea, publicado no fim do ano passado, aponta que, em nosso país, cerca de 60 mil pessoas são assassinadas todos os anos, dos quais cerca de 70% são negros e pardos (pesquisa disponível aqui). Segundo a pesquisa, a possibilidade de o negro ser vítima de homicídio no Brasil é maior inclusive em grupos com escolaridade e características socioeconômicas semelhantes. A chance de um adolescente negro ser assassinado é 3,7 vezes maior em comparação com os brancos.
O combate à discriminação racial no Brasil deveria começar pela negação desta imagem animalizada do negro e de qualquer ser humano. Não é ridicularizando os conceitos racistas que combateremos o efeito nocivo do racismo no Brasil, que é o genocídio da população jovem e negra. Alguns casos de morte ganham repercussão nacional e a imprensa faz uso destes como espetacularização, como aconteceu com a morte do dançarino Douglas Rafael da Silva, o DG, do programa Esquenta da Rede Globo. Mas essa é uma discussão que necessita de outra abordagem. O brasileiro precisa entender que racismo se combate com educação, mas a educação que damos às nossas crianças ainda é travestida de ideologia racista.
“Assim é o racismo brasileiro: sem cara. Travestido em roupas ilustradas, universalistas, tratando-se a si mesmo como antirracismo, e negando, como antinacional, a presença integral do afro-brasileiro ou do índio-brasileiro. Para este racismo, o racista é aquele que separa, não o que nega a humanidade de outrem; desse modo, racismo, para ele, é o racismo do vizinho (o racismo americano)” (Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Racismo e Antirracismo no Brasil, Editora 34, 2009, p.60).
******
Silvia Elaine Santos de Castro é jornalista, Londrina, PR