Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O formidável exemplo de Salman Rushdie

Há 25 anos, ocorreram quatro fatos extraordinários que continuam afetando o mundo. A queda do Muro de Berlim e do império que Vladimir Putin gostaria de restaurar; o massacre da Praça Tiananmen, na China, que colocou o país numa trajetória completamente diferente e o transformou naquilo que é hoje; a criação pelo então quase desconhecido cientista britânico Tim Berners-Lee do que se tornaria a internet; e a condenação pronunciada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini contra o escritor Salman Rushdie.

No dia 4 [de maio], conversei com Rushdie em Nova York, no festival americano PEN World Voices, para discutir as consequências desses eventos para a liberdade de expressão. Perguntei como ele vivenciou a Revolução de Veludo, de 1989, e onde ele se encontrava quando o Muro de Berlim veio abaixo. Ele não se lembrava exatamente, mas confessou que sentiu uma ponta de inveja quando viu outros, como Nelson Mandela, caminharem para a liberdade anos mais tarde enquanto ele mesmo ainda amargava a prisão.

Depois do evento, fomos caminhar pelas ruas de Nova York com um grupo de escritores e Salman ficou na esquina da Cooper Square tentando pegar um táxi. Quem sabe qual era o país de origem do taxista. Do Irã, talvez? Esse clima normal na vida de um escritor, que por tanto tempo pareceu um sonho inatingível, é uma vitória. A indagação fundamental é se a luta pela liberdade de expressão contra os fanáticos e opressores de todos os tipos está indo na direção certa.

Na Grã-Bretanha e na Europa, em geral, a maioria dos muçulmanos aceitou claramente, de uma forma ou de outra, as regras básicas da coexistência pacífica numa sociedade liberal pluralista. Um pequeno sintoma desse avanço foi a branda reação da maioria dos muçulmanos britânicos à concessão do título de cavaleiro ao polêmico escritor.

Nem perdida, nem conquistada

Permanece a questão. Na Grã-Bretanha, assim como em muitos países europeus, a evolução da grande maioria dos muçulmanos levou a aceitação e até mesmo ao apoio ativo da liberdade de expressão, o que necessariamente inclui o direito (embora não o dever) de ofender.

Por outro lado, Rushdie afirmou – e uma pesquisa cuidadosa respalda essa posição – que uma pequena minoria nessas comunidades muçulmanas europeias continua perigosamente radicalizada.

Em muitos países de maioria muçulmana, a restrição à liberdade de expressão continua catastrófica. Por exemplo, o New York Times publicou artigo sobre um homem que passou mais de 19 meses preso na Indonésia, acusado de incentivar o ódio religioso. Ele se declarara ateu na rede mundial. Igualmente preocupante é o fato de que países anteriormente mais seculares, como a Turquia, estão caminhando para a direção errada.

É importante ressaltar que essa intimidação não é monopólio dos muçulmanos. Na Índia, país de origem de Rushdie, há extremistas hindus que lideram hoje o segundo esporte nacional: considerar-se ofendidos. Por isso, a editora Penguin India deixou de publicar um livro da historiadora americana Wendy Doniger sobre a história do grupo étnico por pressão de grupos fundamentalistas.

Na China, o sistema implementado depois de 1989 produziu uma economia que, em breve, será a maior do globo e criou também o mais poderoso aparato de censura do mundo. Enquanto em outros países os que detêm o poder e se dizem religiosos perseguem os ateus e pessoas de outros credos, na China, o Estado comunista persegue quem tente se organizar segundo diretrizes religiosas sem a sua aprovação, sejam cristãos ou da Falun Gong.

O aparato da censura na China ganhou dimensão porque o volume de “discursos” a serem monitorados é muito maior do que há 25 anos. O WeChat, equivalente chinês do WhatsApp, tem mais de 300 milhões de usuários. O vencedor do prêmio deste ano do American PEN de Liberdade Digital, o CEO do Twitter, Dick Costolo, lembrou que o site hospeda mais de 500 milhões de tuítes por dia. Trata-se de um ganho quantitativo imenso para a liberdade de expressão, mas que acarreta seus próprios riscos.

Não são apenas os regimes totalitários que abusam da internet como uma ferramenta de vigilância das massas. Uma pesquisa da PEN entre escritores americanos constatou que eles não só se disseram preocupados com a vigilância da Agência de Segurança Nacional, denunciada por Edward Snowden, como também, em alguns casos, confessaram que, em razão disso, adotaram a autocensura.

“Quanto à luta pelos Versos Satânicos”, escreveu Rushdie em suas memórias, publicadas sob o pseudônimo de Joseph Anton, em 2012, “ainda é difícil dizer se acabou numa vitória ou numa derrota”. Pode-se dizer o mesmo sobre as consequências de todos os quatro poderosos eventos de 1989. É o que ocorre com a batalha pela liberdade de expressão: jamais totalmente perdida, jamais definitivamente ganha.

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Timothy Garton Ash é colunista da Foreign Policy