Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Moradores de favela são chamados de bandidos

Você nem precisa ser um leitor atento para perceber o lugar que os moradores de favelas ocupam na cobertura do jornal O Globo, principalmente de uns tempos para cá, quando, no Rio de Janeiro, a celebrada política de pacificação começou a ser questionada por parte da população denunciando a violência nada pacífica da polícia pacificadora. Mas, na edição do dia 15 de maio, o jornal, por escancaramento editorial ou “ato falho”, abriu o jogo, sem disfarces.

Bandidos apedrejam UPP de Manguinhos”, diz o título de uma nota de três parágrafos. O subtítulo, curiosamente, muda os personagens (ou não?), e anuncia: “Moradores fazem protesto após jovem ser morto em confronto” [grifos meus, estes e os demais]. A mudança de bandidos para moradores, referindo-se ao mesmo ato que gera a notícia, causa a primeira estranheza e nos leva a buscar, no texto, qual a relação entre os dois. Vejamos.

No primeiro parágrafo, a nota diz que “uma das bases avançadas da UPP do Complexo de Manguinhos foi atacada durante uma manifestação de moradores…” Continua, informando que “o protesto” “contou com cerca de 60 pessoas” e que, “além de depredar a base, o grupo tentou fechar as avenidas Leopoldo Bulhões e dos Democráticos, ateando fogo em objetos e jogando pedra contra veículos”. Vocês, eu não sei, mas eu não tenho dúvida de que bandidos, moradores, pessoas e grupo são apenas nomes diferentes de um mesmo personagem, o agente da notícia. Contando com uma licença filosófica, proponho uma espécie de silogismo adaptado:

Se:

1. O protesto foi feito por moradores (da favela);

2. O protesto resultou no apedrejamento (da sede da UPP);

3. O apedrejamento foi feito por bandidos.

Logo: os moradores de favela (pelo menos, os de Manguinhos) são bandidos.

Eticamente deplorável

É bom ressaltar que não há no texto uma única referência à participação de bandidos, na definição que o dicionário dá a essa palavra, no protesto ou no apedrejamento. Talvez o jornalista (a nota não é assinada) ou o editor do Globo ache que todo mundo que apedreja um bem público (como o contêiner da UPP) ou privado (como os veículos mencionados) seja bandido. É um direito, mas se me lembro bem do que aprendi sobre a distribuição de textos num jornal, isso deveria constar do editorial ou do espaço de opinião (que, aliás, está cheio de coisas do gênero).

Talvez o jornalista ou o editor do Globo ache, inclusive, que no contexto de favelas cariocas historicamente tomadas pelo tráfico de drogas não é problema chamar de bandidos pessoas que manifestam de forma violenta (contra coisas) sua revolta pela violência contra outras pessoas que lhes são próximas. Talvez, por fim, o jornalista ou editor ache que, independentemente das razões e mesmo das ações, quem ousa protestar contra uma política que enfraqueceu a presença do tráfico – mesmo que isso venha se resumindo a uma simples mudança de quem continua matando –, valorizou imóveis e regiões inteiras da cidade e trouxe a paz aos moradores dos bairros de classe média, só pode ser bandido.

São muitas as possibilidades, mas todas denunciam um jornalismo tecnicamente abaixo da crítica e eticamente deplorável. E, mais do que isso: uma linha editorial que não mede esforços para criminalizar populações inteiras, a despeito do massacre objetivo e factual que elas vêm sofrendo; que apela à manipulação explícita de informações que ajudam a reafirmar na opinião pública uma visão preconceituosa, que legitima o comportamento repressor e endossa a violência de Estado sobre esse “outro” a ponto de ele poder ser caracterizado pela palavra “bandido”.

Cadê a notícia?

Tem se tornado cada vez mais evidente e indisfarçável o lugar que esse jornal reserva à população mais pobre, principalmente moradores de favela, no seu conceito de notícia. Pois bem, depois de chamar os moradores da favela de Manguinhos de bandidos, a nota do Globo finalmente traz informações sobre a razão dos protestos. Confirmando seu papel de extensão da assessoria de imprensa da polícia, dos governos do estado e municipal e dos órgãos oficiais a ele ligados, o parágrafo começa com um já conhecido “segundo a PM”. E, claro, segundo a PM, adivinhem: Jonathan de Oliveira Lima, o rapaz morto, era um “criminoso”. Não conheço Jonathan e não sei se ele tinha envolvimento com o crime – o que em nada justificaria que ele fosse morto pela polícia –, mas é desconcertante ver um veículo que se diz jornalístico – e com isso não quero dizer imparcial, porque não acredito nisso, mas minimamente comprometido com a informação – aceitar e simplesmente repetir o que “um dos lados” – o acusado – diz.

Vejamos os termos. Depois de contar a versão da polícia, de que a “equipe da unidade” teria deparado com “criminosos armados” e, “no confronto”, o rapaz teria sido baleado e levado para a Unidade de Pronto Atendimento de Manguinhos, diz a nota: “Lá, os policiais o reconheceram como sendo um dos homens que fizeram disparos contra a equipe da UPP. Os outros criminosos conseguiram fugir”. Na língua portuguesa, se há “outro” é porque antes houve “um”. E esse “um” “criminoso” em questão, vejam bem, é Jonathan. A polícia, acusada de tê-lo matado, disse. E o jornal não só acreditou como repetiu, em nome próprio, na parte da notícia reservada não aos depoimentos conduzidos por expressões como “segundo” ou “de acordo com”, mas como informação descritiva e objetiva. Para falar a verdade, diante de tudo que dissemos antes, isso faz pouca diferença, já que a simples condição de morador de Manguinhos valeria o adjetivo.

A frase seguinte, que fecha o parágrafo, informa – ninguém sabe bem por que nem com que objetivo, jornalisticamente falando – que “o rapaz baleado, segundo moradores, teria deixado o Exército há alguns meses”. E nada mais. Os tais “moradores” que teriam dado essa informação, pelo visto, não foram perguntados sobre a ação da polícia, o tal tiroteio, o tiro que acertou Jonathan. Silêncio total. E o texto termina informando que as ruas foram fechadas durante o “tumulto”.

Para quem acha que pode reduzir (e explicar) todo esse grave processo à escolha equivocada de palavras, sugiro dois autores, de cacifes e lados (na luta diária e estrutural que caracteriza a nossa sociedade) diametralmente opostos. No Manual de Redação d’O Globo, o organizador, Luiz Garcia, afirma: “Não é pedido a ninguém que tenha um dicionário na cabeça; mas exige-se de todos que conheçam o significado exato de cada termo que usarem.” No livro A Ideologia Alemã, escrito no século 19 e atualíssimo, no que tem de principal para a nossa época, Marx e Engels deram a chave da leitura que assumimos: “A linguagem é a consciência prática”.

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Cátia Guimarães é jornalista