Nova chacina cometida em solo norte-americano viraliza noções erradas sobre o autismo, doença mental e homicídios. Na sexta-feira (23/05), um novo episódio de violência pessoal atingiu o solo norte-americano naquilo que parece ser a continuação de um filme, exceto que não se trata de um filme, mas de uma realidade cruel que acabou com a vida de pelo menos seis pessoas, além de ter ferido outras tantas. Como todos os homicídios, uma violência abominável e, pelo menos aparentemente, absolutamente desnecessária e injustificável. O autor dos homicídios, um jovem de 22 anos chamado Elliot Rodger, é o mais novo monstro da América, que parece reciclar de tempos em tempos personagens dessa realidade mais sombria que os mais sombrios filmes do seu cinema.
Elliot Rodger, o homicida, está morto também. Ele pode ter sido morto no tiroteio que trocou com a polícia de Isla Vista, Califórnia, ou pode ter tirado a própria vida. Seu gesto, serial, repete o de outros homicidas, tais como James Eagan Holmes que, em 2012, executou 12 pessoas em uma exibição do filme Batman: o cavaleiro das trevas em Denver, Colorado (ver aqui) ou com o personagem Kevin, do livro e filme Vamos falar sobre Kevin?, baseado em dezenas de relatos semelhantes estudados pela escritora Lionel Shriver.
Algo mais que a evidente tragédia e semelhantes coincidências acaba por remeter um crime ao outro. No caso de Elliot, a hipótese de uma forma de autismo, a síndrome de Asperger, estar por trás do gesto foi apresentada pelo advogado da família, Alan Schifman (ver aqui). Não é a primeira vez que a associação é feita nem que se debita ao diagnóstico a causa direta de comportamentos homicidas.
Comportamento criminoso
Em 2012 ainda, em outra chacina – desta vez em Newtown, Connecticut – quando, em uma escola, 26 pessoas foram mortas, os temas também estiveram muito próximos. Muitas pessoas opinaram, entre jornalistas, especialistas e familiares de pessoas com autismo. Isso aconteceu, no Brasil, especialmente depois que uma psicóloga declarou ao vivo, no programa Domingão do Faustão, da Rede Globo, que o comportamento poderia ser explicado pelo diagnóstico. À época, familiares e entidades de pessoas com autismo expuseram sua contrariedade com os argumentos apresentados, na tentativa de refutar a associação que se estabelecia. Nas redes sociais, o assunto dominou inúmeras discussões e os próprios meios de comunicação jogaram luz ao que as pessoas diretamente envolvidas estavam discutindo a respeito.
É muito provável que, a respeito da nova ocorrência, o mesmo volte a acontecer. A torrente de opiniões é incontrolável e, dentre a torrente, é cada vez mais impreciso distinguir quem tem um pouco de razão e quem já perdeu totalmente o bom senso. Visualizar o que familiares e as próprias pessoas com autismo estão relatando é um passo fundamental no sentido de evitar conclusões e generalizações apressadas e sem nenhum sentido. Os especialistas podem e devem colaborar, mas tomá-los exclusivamente é um risco considerável, já que em muitos casos sua perspectiva é apenas patologizante, não veem a pessoa por trás do indivíduo e o sujeito tomado apressadamente pelo rótulo, em explicações que não se aventuram a entender o evento além do seu causador, confinando as causas à imprecisão que ronda tanto o autismo quanto as doenças mentais, isso ainda hoje.
Some-se a isso o fato de que o assassino foi apresentado pela própria família desta forma, talvez na esperança de atenuar ou justificar a violência cometida. Mas um diagnóstico não comete crimes, quem os comete são as pessoas. A tese de que existam assassinos ou psicopatas inatos é antiga, remonta às teorias lombrosianas e aos precursores do criminalismo. Entretanto, ainda hoje são objetos de polêmica. No caso de James Eagan Holmes, em Aurora, acontecera o mesmo e, como o autor do crime permanece vivo, pleiteou-se a apresentação do diagnóstico de doença mental como atenuante, como uma espécie de álibi. Neste caso, a situação é um pouco distinta, mas não talvez o que se procura ao vincular-se um comportamento criminoso a causas psicológicas.
Barbárie social
A confusão mais simples que é feita, nesses casos, é entre o que seja autismo e o que seja doença mental. Postular uma hierarquia de gravidade e periculosidade, mesmo na opinião de familiares, é um tipo de crueldade que as pessoas não parecem importar-se em cometer. Não se trata de que o autismo possa ser menos grave que a esquizofrenia (ou vice-versa) ou que um dos diagnósticos seja causa de comportamentos violentos e o outro não, o fato é que um não deveria ser o bode expiatório do outro. Além disso, talvez seja necessário repetir, diagnósticos não cometem assassinatos. Quem os faz são as pessoas e mesmo autistas e esquizofrênicos são sujeitos sociais, não são essencialmente portadores de uma sintomatologia cujo comportamento pode ser tomado como previsível.
Assim como debitar as razões de crimes violentos e absurdos, como estes, diretamente a causas patológicas ou ao autismo especificamente é uma temeridade irresponsável, aventar que pessoas autistas e esquizofrênicas não possam cometer crimes é igualmente incompreensível. Podem e cometem, como todas as pessoas, mas no seu caso parece querer-se embutir uma espécie de razão iatrogênica, como se fossem pessoas fadadas a isso. Frente a argumentações dessa espécie, é preciso duvidar e investigar um pouco mais os contextos sociais e afetivos nos quais a violência explode de modo tão abissal. Isso requer mais que cuidado com as pessoas, requer consideração pela pessoa humana e, sobretudo, a consideração de que mesmo o autismo e a doença mental constituem naturalmente a experiência humana.
Por outro lado, previsível mesmo é que uma sociedade – deixemos os indivíduos e seus diagnósticos de lado por um instante – que vende armas de fogo com a mesma facilidade que se vendem brinquedos ou comida acabará por ter de encarar o resultado de acesso tão franqueado à violência, mesmo que em situações bárbaras como são as chacinas. Se não é possível evitar que eventualmente alguém tenha acesso a arsenais particulares de eliminação, então a sociedade norte-americana- talvez a planetária – esteja em um impasse ainda maior, pela necessidade de resolver uma cultura baseada em padrões de força, ocupação e beligerância permanente. A existência de uma barbárie social tampouco pode justificar crimes monstruosos como estes, mas a pior chacina que se pode fazer é contra a possibilidade de criarem-se relações humanas mais respeitosas. E isso, claro, a despeito de qualquer diagnóstico. Se há uma tendência na estigmatização de criminosos assim, não é possível recusar a violência inerente ao próprio estigma social do qual, mais ou menos diretamente, todos continuamos a dar causa.
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Lucio Carvalho é coordenador-geral da Inclusive – Inclusão e Cidadania e autor de Morphopolis