Daqui a dias, Julian Assange completará dois anos de confinamento na Embaixada do Equador em Londres, onde se refugiou, em 18 de junho de 2012. Ali vive como um prisioneiro, apertado num pequeno escritório adaptado, onde dispõe de cama, telefone, computador, chuveiro, quitinete e uma esteira para fazer exercícios. Em volta do prédio, a polícia monta guarda com um custoso dispositivo: nos primeiros meses, gastaram-se US$ 4,5 milhões para vigiá-lo.
Assange é objeto de dois processos. O primeiro refere-se a um imbróglio em que se envolveu na Suécia, onde duas mulheres o acusam, desde agosto de 2010, de “comportamento não consensual em encontros sexuais consensuais”. Requerida sua extradição, seguiu-se uma batalha jurídica que se prolongou por quase dois anos. Perdendo o último recurso, ele solicitou asilo ao governo equatoriano. E o fez, não por temor às eventuais consequências deste primeiro processo.
O que o preocupava – e o preocupa até hoje – é o segundo, bem mais tortuoso e perigoso. Quem o persegue, embora ainda não de forma oficial, é o governo dos Estados Unidos, que deseja inquiri-lo sobre os documentos confidenciais cedidos à ONG Wikileaks, da qual Assange é um dos editores, e que se dedica a divulgar relatórios secretos que evidenciem malfeitos que estados e empresas tentam esconder.
A narrativa que se segue evidencia que os receios do perseguido têm fundamento.
Quando vieram à luz, os documentos provocaram sensação, sobretudo os registros referentes às guerras conduzidas pelos EUA no Iraque e no Afeganistão. Milhões de pessoas puderam ler e ver (havia também filmes) crimes praticados por soldados estadunidenses, entre os quais assassinatos, acobertados pelas cadeias de comando. Já nos telegramas diplomáticos, apareceram manobras escusas e manifestações explícitas de hipocrisia, dessas que permanecem para sempre no olvido da história ou, na melhor das hipóteses, são conhecidas apenas dezenas de anos depois.
Reagiram com sagrada ira os homens honrados envolvidos, porque “so are they all, all honourable men” (assim são todos eles, todos honrados homens), na indignada fala – amargamente irônica – atribuída por Shakespeare a Marco Antônio, sobre os assassinos de Júlio César.
Pessoas livres
A divulgação daqueles papéis confidenciais era “ilegal”, e mais: um “ato terrorista”. De qualquer forma, uma “traição”. Na precipitação, houve gente clamando pela execução de Assange, sob os auspícios de uma Lei contra a Espionagem, de 1917, que prevê a pena de morte para os que entregam informações ao inimigo.
A fonte dos segredos revelados foi logo identificada: o soldado Bradley Manning, denunciado à polícia por um triste dedo-duro, já caído em merecido ostracismo.
Preso em 27 de maio de 2010, no Iraque, onde estava, levaram Manning para Quantico, uma base dos fuzileiros navais no Estado de Virgínia. Ali foi tão barbarizado que Juan E. Mendez, encarregado especial da ONU para denúncias relativas à tortura, descreveu as condições da cadeia como “cruéis, desumanas e degradantes”. Em janeiro de 2011, a Anistia Internacional apoiou Mendez. Em março, o próprio porta-voz do Departamento de Estado, Philip J. Crowley, criticou o tratamento dispensado ao preso e renunciou ao cargo. No mês seguinte, centenas de acadêmicos assinaram uma petição no mesmo sentido, denunciando violações da Constituição dos Estados Unidos. Manning ainda teve que suportar outros vexames, decorrentes de solicitação de assistência médica para mudança de sexo – desde agosto do ano passado, por se sentir mulher, quer ser tratada como tal e já mudou, inclusive, de nome, para Chelsea Manning, mas suas demandas chocam-se com a insensibilidade dos carcereiros que se escudam no fato de que os códigos militares não preveem a figura do “transgênero”.
O julgamento foi rápido e a sentença, brutal: 35 anos de prisão, decidida em 21 de agosto de 2013.
Manning e Assange são acusados do crime de divulgar crimes. De nada valem seus argumentos de que desejam uma discussão mundial, aberta e “esperançosa”, que pudesse ensejar reformas, sem as quais, como disse Manning no tribunal, “estamos condenados como espécie”. Estas frágeis e verdadeiras palavras, porém, suscitam, entre as autoridades, apenas acusações e condenações. Para elas, os dois não passam de traidores e mentirosos.
Esplêndidos mentirosos!
Assim referiu-se Horácio a Hypermnestra, a única danaide, entre 50, que mentiu ao pai – e o traiu – pelo nobre sentimento do amor. Os deuses a perdoaram, assegurando-lhe reconhecimento em vida e, depois da morte, pela eternidade, acesso aos Campos Elíseos, o paraíso dos antigos gregos.
As pessoas livres e que amam a liberdade não podem, infelizmente, oferecer a Manning e a Assange nenhum paraíso, mas lhes ofertarão o que têm de melhor: a solidariedade. E palavras de admiração, coragem e amizade.
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Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF