Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Tão perto, tão longe

A mídia jornalística não consegue, especialmente em períodos de crise como o que vivem os transportes na Região Metropolitana de São Paulo, expor aos cidadãos aquilo que mais profundamente está em jogo: um sistema de transporte inserido num modelo de produção e reprodução das cidades. Algo que está logo abaixo da superfície dos conflitos, mas quase ninguém vê. Tão perto e tão longe.

A atenção e as energias são inexoravelmente sugadas pelo que dá mais audiência: o conflito. Trata-se de um conflito múltiplo. Começa no interior das categorias profissionais, entre promotores e apoiadores de determinado movimento, de um lado, e, de outro, seus adversários políticos e a massa de trabalhadores menos atraída pelas lideranças grevistas.

Como se trata de serviços públicos essenciais, imediatamente o conflito envolve as autoridades, que eventualmente mandam a polícia, a qual tende a se chocar com os mais exaltados (haverá quem diga “mais conscientes”, mas essa é uma hipótese de difícil comprovação) e com provocadores.

Cooptação

As estruturas sindicais e associativas foram em grande parte cooptadas pelo poder – ou por algum dos contrapoderes – via Estado, em estilo getuliano, e funcionam segundo a lógica de poderes e contrapoderes.

A dissidência sindical ou associativa não parece agir em função dos interesses percebidos como próprios pela população. Seu discurso e suas práticas têm balizas específicas. Talvez devido à simbiose entre sindicatos e governos, tende a se chocar com o aparato estatal mesmo quando esse aparece aos olhos da população como garantidor (efetivo ou presumido) de interesses coletivos e individuais.

Ao fim e ao cabo, todos os atores terminam priorizando o que lhes parece mais conveniente para produzir uma narrativa que lhes permita vencer as eleições e manter o poder no sindicato ou associação.

Também dessa natureza atual das estruturas e dinâmicas sindicais e associativas a mídia jornalística escassamente dá notícias. Na mais recente greve de motoristas de ônibus de São Paulo ficou-se sabendo incidentalmente – graças a uma informação fornecida pelo Ministério Público – que em vinte anos a disputa sindical ocasionou 16 mortes, deixou dezenas de feridos e resultou em prisões e inquéritos.

Horizonte curto

Entra agora um problema que não é da mídia, embora ela seja cúmplice na sua perenização: os ocupantes de funções públicas só muito raramente pensam em políticas de Estado que atravessem governos e possam de fato produzir soluções satisfatórias e duradouras. Se as pesquisas detectarem simpatia pelo movimento, a polícia agirá com mais cautela. Se o governante ler a subjetividade dos eleitores como à espera de uma resposta “firme”, mandará baixar o cacete, como sugeriu Ronaldo Fenômeno.

Se a autoridade, movida por seus cálculos político-eleitorais, entrar em acordo com os representantes de determinada categoria, reescreverá sua narrativa sobre aquele serviço público para que ela incorpore as virtudes de ter sido dado aumento, ou terem sido atendidas outras reivindicações.

Tudo agravado pela cadência do planejamento e da execução das obras e políticas públicas, finamente sintonizada com os quatro anos de duração dos mandatos – hoje em dia, com frequência, desdobrados em mais quatro, graças à possibilidade, alguns dirão quase inevitabilidade, da reeleição.

A vida não segue planos

Mesmo os planejadores mais bem-intencionados e conscienciosos trabalham com projeções que, por definição, jamais coincidem com as necessidades que serão encontradas quando os prazos se cumprirem. Aqui ou em qualquer outro ponto do planeta.

Um exemplo paulistano já gasto é o da rodoviária do Tietê. Quando foi feita, pensou-se que era um desperdício, fruto de megalomania, na melhor das hipóteses, ou de corrupção, na mais provável. E hoje ela virou um ovinho. Entre outras razões, porque os planejadores não tinham como trabalhar com variáveis que estavam muito além de seu escopo e do alcance de seus cálculos: toda a desconcentração de desenvolvimento que o país viveu depois da criação da indústria automobilística, que só faria sentido com novas e boas estradas, e da construção de Brasília, que ligou por terra o Centro-Oeste ao Sudeste (historicamente, a ligação era fluvial). Toda a evolução dos veículos. A instituição do seguro-desemprego, que aumentou o vaivém de trabalhadores entre sua terra natal e a metrópole. Por aí afora.

Mas toda vez que se faz uma grande intervenção no funcionamento de uma cidade, ela cria um fato consumado e novas articulações com o tecido urbano preexistente. Nesse caso, foi preciso conviver com a interferência da rodoviária do Tietê na Marginal do Tietê, para dar um único e óbvio exemplo. E com dolorosa frequência o rabo passa a abanar o cachorro.

Cascatas sobrepostas

Voltemos ao tema do conflito. O senso comum, ponto de vista da cobertura jornalística, tende a contrapor os grevistas, ou os promotores de paralisações – como antes do golpe de 1964, há greves que não são decididas em assembleias, mas basicamente impostas por piquetes, se não por sabotagens, como era o caso há 50 anos – à grande maioria dos usuários dos transportes.

Esses são sistematicamente convidados pela cobertura jornalística a ver no movimento reivindicatório ou de protesto apenas ou sobretudo um atentado a seu “direito de ir e vir”, e não uma decorrência extremamente negativa do conflito original, que pode ter motivações legítimas e pode até mesmo acenar com um caminho mais efetivo para mudar a dinâmica da cidade, em benefício do transporte coletivo de massas – na época atual, metrô e trem.

Como o tempo é limitado – o tempo de ouvir notícias, lê-las nos jornais e na internet, etc., e também o tempo para refletir sobre elas –, a ocupação da atenção pela epiderme conflituosa é avassaladora. Então, o que se vai discutir é se a polícia tacou o sarrafo em manifestantes na estação Ana Rosa do metrô, ou quantas horas o infeliz trabalhador, ou motorista, levou para se deslocar. Ou, primus inter pares no noticiário, qual a medida em quilômetros do congestionamento das vias, uma soma de qualidade técnica duvidosa que não ajuda os indivíduos a planejar seus movimentos concretos na cidade.

Infelizmente, os ativistas têm se mostrado incapazes de expor o que de verdade está em causa: a cidade construída e mantida até aqui sob a hegemonia corruptora de empresas imobiliárias e de ônibus, e seus incontáveis associados. Mesmo os mais atilados, como dirigentes do Movimento Passe Livre (MPL), não têm conseguido fazer com que essa pauta seja mais valorizada do que seus subprodutos midiáticos, dos quais a bravata “não vai ter Copa” – de lavra alheia ao MPL, registre-se – terá sido uma floração brilhante e fugaz, uma “cascata” montada em cima de fogos de artifício, o espetáculo da Copa.