E não é que Zhou Enlai tinha razão? Em 1953, quando perguntado sobre o que pensava da Revolução Francesa ocorrida em 1789, o então primeiro-ministro da República Popular da China respondeu: “Ainda é muito cedo para dizer alguma coisa”. A decisão tomada pelo governo francês de proibir manifestação em Paris em favor da Palestina parece confirmar a percepção do político.
“Caso sin precedentes: Francia prohíbe una manifestación propalestina”, estampa na primeira página o site de notícias RT!Sepa Más! (TeleNoticiasMadrid). Em livre tradução, a notícia publicada no sábado (19/7), dizia: “A decisão do Estado francês causou indignação em massa. França tem sido fortemente criticada por ser o primeiro país do mundo a proibir protestos contra as ações de Israel na Palestina. (…) Bernard Cazeneuve, ministro do Interior francês diz que tomou essa decisão por motivos de segurança: ‘De acordo com as provas apresentadas pelo chefe da polícia de Paris, considero que não há condições para garantir a segurança durante a manifestação’.”
Le Figaro também destacou a atitude do governo, a que chamou de “decisão inédita”: “Em uma decisão inédita na Europa, a prefeitura de Paris proibiu o ato ontem devido aos confrontos diante de duas sinagogas da capital no domingo passado, quando uma primeira manifestação em favor dos palestinos foi realizada e oito pessoas ficaram feridas. A Justiça francesa lembrou que realizar um ato proibido pode ser punido com até seis anos de prisão e uma multa de € 7,5 mil (cerca de R$ 22,6 mil). Uma das diretoras do único partido político a manter seu apoio à manifestação de hoje, mesmo após a proibição, o Novo Partido Anticapitalista (NPA), Sandra Demarcq, julgou “ilegítima e escandalosa” a decisão do governo francês. “A solidariedade ao povo palestino tem que ser expressada”, declarou.(…) Em várias outras cidades francesas e europeias, milhares saíram às ruas hoje para apoiar os palestinos de Gaza e pedir o fim dos ataques israelenses. Com exceção de Paris, os atos realizados hoje em toda a Europa não registraram violências”, finaliza o diário identificado com a direita e a centro-direita.
Francês sem manif é amor sem beijinho
O conservador Le Monde chama na primeira página descrevendo a violência: “Manifestation en soutien à Gaza : gaz lacrymogènes, projectiles et véhicules incendiés à Barbès” ( “Manifestação em defesa de Gaza: gás lacrimogêneo, projéteis e veículos incendiados em Barbès” – Barbès-Rochechouart, bairro de Paris). No lide, o remarque sobre a proibição: “Interdite par le préfet de police (…)” “proibida pelo chefe de polícia” (…). E a matéria segue descrevendo concentração, número de manifestantes, o clima de tranquilidade, declarações e salientando em entretítulo a fala de Sandra Demarcq, do NPA, ouvida também pelo concorrente:”Même à Tel Aviv, la manifestation a eu lieu! (“Até em Tel Aviv houve manifestação”). Logo em seguida, o texto recorre a outro entretítulo para sublinhar o ineditismo da resolução governamental de proibir os moradores de Paris de se manifestarem na cidade que construiu sua história nas ruas: Soudain, les gaz lacrymogènes ( De repente, os gases lacrimogêneos): “Pouco antes das 16 horas”, conta a reportagem, “ouve-se o barulho de três tiros. Um movimento de multidão começa, muitos correm para a rua Poulet. Uma moça cai. Os gases lacrimogêneos são atirados provocando uma atmosfera irrespirável. Alguns sufocam, outros tenta se refugiar nos prédios vizinhos, mercearias ou açougues da rua. Os CRS, em grande número, se espalham pelas ruas adjacentes do boulevard Barbès. Os manifestantes lançam pedras e projéteis contra eles. Muitos passantes que faziam compras ficaram chocados e se queixaram de que os policiais da CRS não paravam de disparar tiros de gás lacrimogêneo.”
A CRS, Companhia Republicana de Segurança, é a Polícia Nacional civil subordinada ao Ministério do Interior. A corporação foi criada na Revolução Francesa e está contemplada no artigo 12 da declaração dos direitos do homem e do cidadão: “A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública: esta força é ora instituída em benefício de todos e não para uso particular daqueles aos quais ela está subordinada.” Os franceses, e em especial o parisiense, estão habituados a relacionar Liberdade, Igualdade, Fraternidade com manifestações, sobretudo a céu aberto. Francês sem manif é que nem amor sem beijinho, Piu Piu sem Frajola e Buchecha sem Claudinho. Com a Revolução Francesa, o mundo conhecia e começava a aprender sobre a democracia moderna. No final dos anos de 1980, os liberais chegaram ao poder e fizeram crer que democracia e liberalismo eram gêmeos univitelinos e xifópagos inseparáveis. E a conversa fiada, sistematizada e bem orquestrada nas páginas jornalísticas, pegou e pega muita gente. Em meio a essa regressão política, creio que, de fato, ainda é muito cedo para dizer alguma coisa sobre a Revolução Francesa.
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Maria Luiza Franco Busse é jornalista e doutora em Semiologia pela UFRJ