Estão armando a paródia de um novo Plano Cohen, com a habitual colaboração da mídia. Os objetivos são, até agora, parcialmente nítidos. Desde 12 de julho de 2014, véspera do jogo final da Copa do Mundo, a cidade do Rio de Janeiro está vivendo as características inquietantes de uma localizada experiência de ditadura civil militar (embora boa parte da população não tenha se dado conta). Após a prisão de duas dúzias de jovens militantes, agora batizados com o polivalente apelido de “ativistas”, e com a repressão arbitrária e provocadora da Polícia Militar às manifestações de rua ocorridas na mesma data próximas ao Maracanã, criou-se um subsequente clima de terror e inquietação sobre cidadãos ativos em defesa dos direitos civis. Vieram protestos de entidades como OAB, ABI, Anistia Internacional, Justiça Global, entre outras.
Vale citar o verbete histórico do CPDOC/FGV sobre o referido Plano Cohen:
“Documento divulgado à nação em 30 de setembro de 1937, contendo supostas ‘instruções da Internacional Comunista (Komintern) para a ação de seus agentes no Brasil’, segundo comunicado oficial do governo. Na realidade, tratava-se de um plano simulado de ação comunista escrito como ‘hipótese de trabalho’, segundo seu verdadeiro autor, o capitão Olímpio Mourão Filho, chefe do serviço secreto da Ação Integralista Brasileira (AIB). Com base no Plano Cohen, o presidente Getúlio Vargas solicitou imediatamente ao Congresso autorização para decretar o estado de guerra pelo prazo de 90 dias. A aprovação da medida abriu caminho para o golpe do Estado Novo, desfechado em 10 de novembro de 1937. A fraude do Plano Cohen só foi revelada após a extinção do Estado Novo, em 1945.”
Evidente que, 77 anos depois, as proporções e o contexto são outros. E os personagens também. Desta vez, ao invés do tragicômico Olímpio (não se perca pelo nome) Mourão – o mesmo que precipitaria o golpe de 1º de abril de 1964, já na condição de general – as figuras que surgem são: Alessandro Thiers, titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática, órgão que tenta parecer um esboço do extinto Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), para ficarmos na comparação com a Era Vargas. É de lastimar que agentes desta delegacia, encarregada de solucionar crimes de fraudes financeiras ou de pedofilia, por exemplo, estejam ocupados numa pantomima macarthista. Há também o promotor Luís Otávio Figueira Lopes, “especializado em crimes digitais (sic)”, segundo o G1 (ver aqui). E, ainda no rol, o juiz Flavio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, cujas sentenças inusitadas se contrapõem ao espírito constitucionalista do sólido liberalismo político do desembargador Siro Darlan, da 7ª Câmara Criminal, que inicialmente concedeu habeas corpus aos prisioneiros diante da precariedade das provas apresentadas pela polícia.
Caça às bruxas e aos votos
De acordo com informação veiculada na mesma edição do G1 (Organizações Globo), que teve acesso aos autos do processo antes mesmo dos advogados da defesa, estaria em curso um violento plano parcialmente executado por pequenas organizações de esquerda na capital carioca, que incluiria incêndio ao prédio da Câmara Municipal, morte de policiais, fabricações de armamentos, ataques a locais públicos, etc., etc. Professores do ensino público são acusados de fabricar armamentos, que seriam distribuídos por uma jornalista. A advogada Heloisa Samy, que defende os militantes, chegou a ser encarcerada sob a acusação de… participar de manifestações. Hoje, na clandestinidade, divulgou uma declaração (ver aqui).
Foram, ainda, incluídos pelas investigações (?) policiais neste suposto grupo paramilitar de esquerda coeso: os dois infelizes jovens acusados de deflagrar o rojão que matou o ainda mais infeliz cinegrafista Santiago Andrade, os fantasmagóricos black-blocs, jovens punks, os integrantes de pequenos grupos políticos diversificados, índios de diversas etnias da Aldeia Maracanã que reivindicam a criação de um centro de cultura indígena no antigo prédio do Museu do Índio… E por aí vai. Caberá aos advogados da defesa, ao jornalismo independente e investigativo e, sobretudo, ao posicionamento firme da sociedade civil, jogar luz sobre tal panorama e se defrontar com as acusações da promotoria que, até o momento, não se mostraram devidamente fundamentadas.
O grupo de autoridades locais encarregado de armar este cenário, visto numa perspectiva ampliada, são peças menores de jogo um pouco mais complexo, porém grotesco. As eleições se avizinham. No Rio de Janeiro, pesquisas eleitorais apontam, até aqui, a supremacia dos candidatos Marcelo Crivella e Anthony Garotinho, que se identificam ao eleitorado de perfil mais conservador. A opção de preferência do governo federal (PT) é pelo atual governador e candidato a reeleição Luiz Fernando Pezão, do PMDB. Ao mesmo tempo, o governo Dilma quer evitar que o candidato presidencial do PSDB, também com discurso conservador de chamada à ordem, tenha um palanque e mais votos no Rio.
A nova caça às bruxas, chancelada publicamente pelo ministro da Justiça Eduardo Cardozo, pode ser considerada a primeira grande parceria entre governos federal e estadual após a posse do vice-governador Pezão no Executivo fluminense. Trata-se de mostrar quem é o mais competente para manter a ordem, nesta disputa eleitoral. E aí o heterogêneo e reduzido grupo de perseguidos parece entrar como bode expiatório.
As críticas à maneira como foi organizada a Copa do Mundo 2014 geraram um inegável mal-estar (e crise de consciência) coletivo que foi além, muito além, das vozes de milhares de pessoas que saíram às ruas em protesto, mesmo acossadas pela truculência das polícias administradas por todos os grandes partidos atuais, sem exceção. Houve um desgaste na imagem do megaevento. Vai daí que as mesmas autoridades (e seus patrocinadores empresariais) responsáveis pela “Copa das Copas”, acusando o golpe, resolveram assumir atitudes golpistas, para recuperar o terreno perdido, numa demonstração de força também para o público internacional. É o velho truque usado com frequência pelos governos dos EUA: criar ou superestimar um inimigo, externo ou interno, como maneira de se fortalecer e chamar à unidade em torno de um alvo comum.
A criminalização da militância
Está claro que as acusações oficiais não surgiram do nada. Trata-se de criminalizar a militância política e social (aliás, iniciativa com apoio de autoridades que já foram vítimas de ditadura, mas que se especializam em desmobilizar e cooptar movimentos sociais), isolando um grupo de jovens e satanizando-os – talvez porque estejam entre os que provavelmente participaram, como tantos cidadãos, dos protestos contra a farra da FIFA e outras reivindicações sociais específicas que tocam amplos setores da população.
Os que hoje detêm o monopólio da violência – e estão longe de serem pacifistas – demonstram tendência autoritária, porém não à maneira soviética, chavista ou castrista, segundo velhos e novos jargões, mas, sim, contra movimentos de transformações dos quais, paradoxalmente, tais autoridades originaram sua legitimidade e experiência políticas. Usam de violências para impressionar com o espantalho da violência.
Exemplo assustador do poder de criminalização da grande mídia (o pontapé inicial partiu da infalível Veja e de O Globo que daqui a 50 anos, se ainda existir, talvez faça autocrítica) é o que acontece com a jovem Elisa de Quadros Pinto Sanzi, apelidada de Sininho. Não se sabe o que surgiu primeiro, a perseguição da polícia ou a da grande mídia – mas ambas se alimentam reciprocamente. O que está provado, afinal, contra esta moça? Qual a dimensão da liderança que exerce – se é que exerce alguma? O que ela fez de concreto além da militância que muitos de nós praticamos ou simpatizamos, alguns poucos ainda conservam, outros nunca se aventuraram? Cercada por um mecanismo de criação de celebridades, de viés perverso, a cidadã Elisa Quadros vem passando por um assédio midiático e policial cujas consequências são imprevisíveis para sua vida.
Os tribunais e os embates políticos vão decidir a eventual culpabilidade e o destino destes jovens que hoje são caçados, execrados publicamente e aprisionados como criminosos. Suas vidas estão afetadas. Porém, como dizia Marc Bloch, o historiador não é juiz. O que inicialmente parecia uma reprimenda focalizada da polícia para conter manifestações no entorno do estádio Maracanã, vai se desdobrando em situações estranhas.
Na condição de pesquisador, já consultei documentos da História do Brasil como os Autos das Devassas das Conjurações Mineira (1789) e Baiana (1798), da República de 1817, Confederação do Equador (1824), Revolta dos Malês (1835), Balaiada (1838), Rebelião Praieira (1848) e outras, como a Revolta da Chibata (1910). Aparecem arrolados personagens de seu tempo, muitas vezes anônimos ou pouco conhecidos, mortos, condenados, absolvidos ou anistiados. Listas produzidas pelas forças repressivas com acusações horripilantes e penalidades equivalentes – e que podem ser lidas e compreendidas de várias maneiras.
Análise documental e distanciamento crítico são características do trabalho historiográfico, o que não significa indiferença ou neutralidade. Sabemos que a Independência foi realizada com a quebra da legalidade da condição colonial, do mesmo modo que a República em relação à monarquia. Para acabar com a escravidão foi preciso muito mais do que uma assinatura da princesa reinante, como demonstraram os quilombos e resistências escravas e abolicionistas. O massacre das populações indígenas foi muitas vezes revidado por estas, em defesa de suas terras, culturas e vidas.
Farsas e factoides
É possível que o atual arremedo de Plano Cohen não venha a ser tão trágico quanto sua matriz: triste farsa, factoide eleitoreiro, já causa danos aos cidadãos acusados cujas vidas profissionais estão paralisadas e prejudicadas. Não podem voltar em suas casas. Não podem falar ao telefone. Vivem (vivemos) um estado de exceção que não pode se tornar regra. As forças políticas que estão se posicionado ativamente contra este ataque à democracia que se cuidem: mesmo a esquerda bem institucionalizada pode levar a sobra.
O que o episódio traz de novidade na conjuntura não é a repressão de caráter social contra os de baixo na hierarquia social, que é traço estrutural na sociedade brasileira (ver o cotidiano das favelas), mas a tentativa de se punir e refrear as liberdades de expressão e manifestação, orquestrada por governos que se afirmam democráticos e, aparentemente, adeptos das regras do liberalismo formal. Mas quando a ordem é ameaçada ou somente incomodada…
Os presos políticos do governo Dilma fazem parte deste momento, como cada um de nós. A biografia da presidente da República poderá ficar marcada por este episódio. Relatos e imagens nas redes sociais sobre perseguições em julho de 2014 se parecem estranhamente com narrativas de meio século atrás. Hoje, em escala menor, menos intensa e mais reduzida do que nos idos de 1964. Mas com o mesmo espírito. A serpente, ainda filhote, parece sair do ovo.
Talvez seja mania de historiador citar datas, nomes, eventos… Muitos dos que já frequentaram as páginas da imprensa taxados de “terroristas” ou “bandidos” hoje aparecem como excelências, bem situados no establishment político e cultural. Sem que, no entanto, tenham ocorrido grandes mudanças na sociedade.
Além de não ser juiz, o historiador não é adivinho nem futurólogo. Mas, num exercício para desconstrução do discurso policial midiático estabelecido, apresento para uma possível releitura os nomes que hoje marcam as páginas impressas ou eletrônicas acusados de criminosos ou “foragidos” (clandestinos, dizia-se em outros tempos). Chama atenção os apelidos que aparecem em alguns casos, neste registro policiático e midialesco (os neologismos e as confusões às vezes são inevitáveis), como “vulgo Y”, numa subliminar associação com delinquentes na linguagem do jornalismo policial (transcrição do G1 aqui, em 20/7/2014):
>> Ativistas presos: Elisa de Quadros Pinto Sanzi, vulgo “Sininho”, Camila Aparecida Rodrigues Jourdan, Igor Pereira d’Icarahy, Fabio Raposo Barbosa, Caio Silva Rangel.
>> Ativistas com mandado de prisão e foragidos: Luiz Carlos Rendeiro Junior, vulgo “Game Over”, Gabriel da Silva Marinho, Karlayne Moraes da Silva Pinheiro, vulgo “Moa”, Eloisa Samy Santiago, Igor Mendes da Silva, Drean Moraes de Moura Corrêa, vulgo “DR”, Shirlene Feitoza da Fonseca, Leonardo Fortini Baroni Pereira, Emerson Raphael Oliveira da Fonseca, Rafael Rêgo Barros Caruso, Filipe Proença de Carvalho Moraes, vulgo “Ratão”, Pedro Guilherme Mascarenhas Freire, Felipe Frieb de Carvalho, Pedro Brandão Maia, vulgo “Pedro Punk”, Bruno de Sousa Vieira Machado, André de Castro Sanchez Basseres, Joseane Maria Araújo de Freitas, Rebeca Martins de Souza.
>> Ativistas liberados: Gerusa Lopes Diniz, Tiago Teixeira Neves da Rocha, Eduarda Oliveira Castro de Souza, Ricardo Egoavil Calderon, vulgo “Karyu”.
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Marco Morel é historiador, jornalista e escritor