“Em vão me tento explicar, os muros são surdos./ Sob a pele das palavras há cifras e códigos./ O sol consola os doentes e não os renova./ As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.” (Carlos Drummond de Andrade, “A flor e a náusea”)
Em momentos de elevada tensão, o melhor que uma imprensa responsável pode fazer é preservar a serenidade, única forma de cumprir com sua promessa – ou sua “missão”, incansavelmente repetida em princípios editoriais – de tentar esclarecer o que se passa. Dos três grandes jornais do país, a Folha de S.Paulo foi o único a adotar essa postura ao mesmo tempo crítica e prudente no episódio das prisões preventivas de manifestantes na véspera da final da Copa do Mundo, em 12/7. Destacou, por exemplo, que o inquérito de duas mil páginas produzido pela polícia levou apenas duas horas para virar processo. Também abriu espaço para especialistas discutirem a decisão judicial.
Foi a mesma atitude assumida diante da prisão de dois jovens em São Paulo acusados de participarem de depredações típicas dos Black Blocs. “Manifestantes são denunciados antes de perícia em explosivos”, escreve a Folha (27/7). Os dois estão presos desde o mês passado.
Bombas de fragmentação?
O inquérito policial que sustentou a expedição de mandado de prisão para 28 ativistas acusados de planejarem atentados no dia da decisão da Copa estava sob segredo de justiça e durante alguns dias ficou inacessível aos advogados de defesa, mas foi vazado para O Globo. O acesso privilegiado poderia ter permitido uma análise criteriosa do material. O jornal, entretanto, se dedicou a reproduzir o que estava nos autos, chegando a mencionar, na primeira matéria (21/7), a possibilidade de utilização de “bombas de fragmentação” pelos suspeitos.
Bombas de fragmentação. Não é pouca coisa.
Em 2001, quando os EUA atacaram o Afeganistão em represália aos atentados de 11 de setembro, a Folha publicou uma pequena animação para demonstrar como funcionam essas bombas.
Domesticamente, é possível fabricar artefatos que poderiam ser chamados assim. Com grande poder destrutivo, embora sem termo de comparação ao dessas bombas lançadas de avião. Se é disso que o inquérito trata, e se o plano era de fato provocar explosões em determinados pontos previamente estudados para espalhar o pânico – e não só isso, visto que a hipótese de produzir feridos e mortos não seria reduzida –, seria algo a se destacar na capa. Desde que se tivesse como fundamentar a informação, pois do contrário seria uma irresponsabilidade.
A necessidade do contraditório
Os mandados de prisão foram considerados abusivos não apenas por parlamentares de esquerda e representantes de ONGs, mas também por juristas que sempre se destacaram na defesa das liberdades democráticas. Entre outras fragilidades – como a acusação de formação de quadrilha, que serviu de base para a decisão judicial e aparentemente carece de sustentação jurídica mais sólida –, eles contestaram a determinação da detenção prévia pela suposição de que aquelas pessoas poderiam cometer crimes.
Pelo menos para quem vê de fora, a suposição não é infundada: o grupo vinha sendo investigado desde setembro do ano passado e a exaltação incendiária da violência era evidente nas manifestações que, talvez por isso mesmo, reuniam cada vez menos gente. Trechos das escutas telefônicas, realizadas com autorização judicial e divulgadas pelos veículos das Organizações Globo, indicam que algumas daquelas pessoas preparavam ações para, no mínimo, tumultuar a festa de encerramento da Copa, ainda que fosse necessário traduzir a linguagem pobremente cifrada dos diálogos.
Pintando o diabo
Mas exageros, como se sabe, são lamentável praxe em inquéritos. Quantos bandidos pés de chinelo já não foram apontados como perigosos e sanguinários monstros capazes de incendiar a cidade? Seria mesmo crível que um grupo minúsculo de jovens estivesse organizando o embrião de uma célula terrorista no país?
Não que estejamos imunes ao perigo, num caso como no outro. Mas por isso mesmo uma imprensa séria precisaria reforçar seus cuidados na hora de tratar de um caso assim. Exatamente porque precisa oferecer informações confiáveis, ainda mais nessa algaravia amplificada pela internet. E para evitar ironias descabidas, e mesmo irresponsáveis, por parte de quem tende a fazer pouco desse tipo de denúncia, de tão escaldado que está.
A não ser, claro, que essa imprensa seja parte de um processo voltado para intimidar quem, sobretudo se jovem, esteja pensando em ir para a rua num momento normalmente agitado como o da campanha eleitoral que se aproxima.
O timing para o contraditório
Na segunda-feira (28/7), O Globo finalmente abriu espaço ao contraditório, destacando no site um editorial em que argumenta a favor da legalidade das prisões ao lado de um artigo do advogado Marcelo Cerqueira, que denuncia resquícios de inspiração fascista na generalidade da tipificação de “crime de quadrilha” em nosso Código Penal e afirma que as “provas” – assim, entre aspas – contra os acusados foram “sabidamente ‘fabricadas’ pela polícia”.
Se foram fabricadas ou não, ou até que ponto, é algo a se apurar. Por isso mesmo é preciso levantar a dúvida.
A base do artigo é um texto que o advogado havia divulgado no dia 15/7 em seu mural no Facebook. A um jornal que acompanha regularmente as mídias sociais dificilmente escaparia essa manifestação. Mas talvez não houvesse interesse em fomentar qualquer dúvida naquela hora.
A praça sitiada
E estávamos no calor da hora. No dia seguinte à prisão de três ativistas – entre os quais a jovem que, em parte pelo trabalho da própria mídia, foi alçada a essa condição híbrida de líder e musa do radicalismo – a polícia desencadeou uma descomunal operação de cerco à Praça Saens Peña, na Tijuca, para conter os que pretendiam seguir até as imediações do Maracanã para protestar na final da Copa. Quatro jornalistas e vários manifestantes foram agredidos por policiais.
O repórter Jorge Antonio Barros, da coluna de Ancelmo Gois, passava – ou tentava passar – pelo local e não teve dúvidas em classificar o cerco como “estado de sítio” (ver aqui): nem moradores eram autorizados a retornar a suas casas. Citava também a desproporção entre o efetivo policial – cerca de 2 mil homens – e o grupo de 600 manifestantes.
A reportagem do jornal, não é preciso dizer, foi bem diferente desse relato, a começar pela menção a “dezenas” de policiais.
Cherchez la femme
Desde então, não se passou um só dia em que O Globo não tivesse publicado notícias a respeito das prisões, junto com notas e editoriais que aplaudiam a ação da Polícia e da Justiça. Quando começou a divulgar trechos do inquérito, não levantou qualquer suspeita quanto a certas conclusões.
A história das bombas de fragmentação é apenas a que causa mais surpresa. Outras são risíveis: alguém, num telefonema grampeado, diz que a manifestação vai “bombar” e isso significa que vão explodir bombas. Um garoto diz que vai matar um policial e isso não é visto como força de expressão.
Mais recentemente, ficamos sabendo, pela Folha (28/7), que alguém citou Bakunin numa conversa e logo o falecido teórico do anarquismo se tornou mais um potencial suspeito. Como autor intelectual do crime? Até faria algum sentido.
No Rio, o contraponto foi feito pelo jornal O Dia. Junto com a Folha, foi quem mostrou que as denúncias eram baseadas em depoimentos de duas pessoas, uma traída, outra rejeitada num namoro. Tudo fica ainda mais frágil e um tanto patético, embora não nos devesse surpreender: afinal, na mesma semana um deputado federal do Rio, que concorre à reeleição e fazia parte da equipe do atual prefeito, era denunciado por corrupção por sua ex-mulher.
O que seria do jornalismo investigativo se não fossem as frustrações amorosas?
Esclarecendo?
No domingo (27/7), o Fantástico apresentou reportagem aplaudida como “esclarecedora” por muitos jornalistas em seus comentários nas redes sociais. Informa que são oito, e não apenas duas, as principais testemunhas. Reproduz diálogos e algumas discussões entre os acusados, que comprovam a articulação de algum plano pirotécnico, cuja magnitude, entretanto, não é possível dimensionar. No mais, apresenta depoimentos de pessoas que não se identificam.
Pode ser que estejam falando a verdade. Pode ser que não. É assim que se esclarece alguma coisa?
Em momentos de elevada tensão, a prudência é um valor especialmente precioso. Rejeitar as reações raivosas contra a grande imprensa, o discurso automático e genérico da “criminalização dos movimentos sociais” que a tudo absolve e se dissemina tão velozmente na rede, exige um jornalismo que rejeite o maniqueísmo e seja capaz de realizar o que promete. Do contrário, ficamos perdidos numa batalha discursiva que apenas alimenta a histeria de parte a parte.
A quem isso há de interessar, é a eterna pergunta.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)