Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O teatro midiático na perseguição a ativistas

Os veículos de comunicação do Grupo Globo têm dado não apenas repetidas amostras de jornalismo rasteiro, ou mesmo de antijornalismo, como ainda não conseguiram explicar as informações privilegiadas que têm de um processo a que sequer os advogados de defesa dos acusados tiveram acesso.

O caso dos 23 perseguidos políticos, que tem em Elisa Quadros, a Sininho, o principal alvo da mídia global, demonstra quão perigosa para a democracia pode ser a relação entre um grupo de comunicação e governos, a polícia e setores do judiciário. Sininho tem sido alvo de acusações que parecem roteiro de novela de péssima qualidade, algo que a Globo tem experiência em produzir.

Roteiro macarrônico de novela de quinta em que uma única pessoa parece ter tomado a frente em uma campanha para queimar edifícios públicos, tocar o terror e tudo isso sem que o real propósito sequer fosse mencionado. O que moveria Sininho? Qual sua motivação e objetivos? Isto, os veículos do Grupo Globo não conseguiram ainda bolar. Os personagens e a trama estão dispostos em um cenário quase apocalíptico, mas ainda não conseguiram encaixar detalhes fundamentais à trama. Tampouco conseguiram explicar como pessoas que nunca se viram na vida estão relacionadas e como elementos anarquistas teriam função de direção em organizações hierárquicas. O enredo da novela global simplesmente não bate com a realidade, ainda que esta nunca tenha sido a preocupação.

Interesse imediatos

O mais grave, para além da tentativa de criminalização de movimentos sociais – algo corriqueiro na história deste grupo de comunicação que, como outros, apoiou de maneira entusiasmada o golpe militar, os anos de chumbo, as torturas e desaparecimentos políticos, e que com a redemocratização adotou automaticamente a posição de defender a repressão e o aparato policial –, está no acesso privilegiado ao processo contra os acusados.

Mesmo o desembargador Siro Darlan, responsável pelo habeas corpus de parte dos ativistas há alguns dias, reclamou a falta de colaboração do delegado responsável pelo caso e de que mesmo ele não teve acesso aos documentos. Circulam pelas redes (também redes de amigos e de apoio aos presos políticos e refugiados, como estão sendo considerados) comentários inúmeros de que mesmo os advogados de defesa encontram dificuldade para ter acesso ao processo e que a Globo simplesmente conhece mais detalhes da acusação que eles, que têm o dever de defender seus clientes e são impedidos de fazê-lo.

Estivesse o grupo Globo interessado em praticar algo semelhante ao jornalismo, buscaria saber por que o interesse em ligar ativistas dispersos e muitos sem qualquer conexão entre si a crimes próximos ao terrorismo exatamente durante a Copa do Mundo (vale lembrar que as primeiras prisões deste grupo se deram um dia antes da final da Copa), um dos eventos mais importantes para o governo Dilma e considerado essencial enquanto propaganda em meio a uma grave crise de confiança e governabilidade.

Sininho, esta que sem dúvida é vítima de perseguição midiática que vai além da do grupo Globo, mas conta com a participação da Veja – o protótipo do panfleto de extrema-direita sem qualquer comprometimento com a verdade factual – e de outros meios, foi presa em Porto Alegre. Ela sequer participaria dos protestos durante a final, no Rio de Janeiro, e sua prisão em outro estado denuncia a participação de agentes ou forças muito além de simplesmente as do Rio de Janeiro. Além do mais, os interesses em jogo vão além apenas da Copa, ou mesmo dos interesses imediatos do Rio de Janeiro.

Protestos passaram a atingir o bolso

Os protestos que tomaram o país desde junho de 2013 são o alvo. O direito ao protesto em si, à indignação e à insatisfação. O interesse é maior que do Rio ou de São Paulo, é um interesse das elites políticas nacionais e, em especial, da federal, que foi inegavelmente o principal alvo dos protestos que continuaram a varrer o país depois de junho (este que tinha foco muito mais local, ainda que tenha se espalhado, nos preços das passagens do transporte público).

Ações nas mídias sociais, como o #NãoVaiTerCopa e o #CopaPraQuem causaram reação raivosa de parte da militância ligada ao governo federal e do próprio governo, que logo criaram “respostas” de gosto e efeito duvidoso, como o #VaiTerCopa ou o mais agressivo, #VaiTerCopaSim que abriu espaço para mensagens com tom até mesmo ameaçador.

Se, por um lado, quem estava nas ruas buscava também um diálogo, por outro este espaço nunca existiu. A grande mídia, capitaneada neste caso por Folha de S.Paulo e Globo, correu para criminalizar os protestos, mesmo com seus jornalistas sendo alvos preferenciais da barbárie policial. Barbárie esta que chegou a forçar uma mudança de tom da mídia que, porém, não durou muito.

Começado o novo ano, os protestos passaram a atingir algo mais do que os brios ditatoriais de amplos setores midiáticos; passaram a atingir o bolso. A Globo (mas não só) investiu pesado na Copa do Mundo e não podia ver seus interesses serem prejudicados por alguns jovens revoltados (sic) estavam nas ruas. Era o momento de agir.

PT criminalizou greve

Não surpreende que hoje o grupo midiático busque chamar os protestos de junho de “junho negro”, numa tentativa de deslegitimar a origem mais imediata da insatisfação que explodiu. Enquanto policiais gravados em vídeo forjando provas e flagrantes ou mesmo participando ativamente de atos de brutalidade contra manifestantes (ou mesmo transeuntes) não causam furor junto à mídia, mas são denunciados e divulgados quase exclusivamente pelas mídias sociais e veículos alternativos, ativistas são criminalizados.

E a criminalização não vem apenas da mídia, como não vem apenas das autoridades cariocas e fluminenses. O ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, já deixou claro seu apoio à repressão, alegando que não há qualquer ilegalidade ocorrendo, pelo contrário. Mesmo a presidente Dilma Rousseff já se manifestou. Seja de forma indireta, usando seu espaço no Facebook para louvar a “integração” das forças de segurança (sic) em uma imagem do mapa do Brasil coalhado por policiais e militares (uma imagem de causar calafrios) e o resultado desta nas ruas, seja declarando com todas as letras que seus esforços junto a dos governos de estados contribuíram para “garantir um padrão de segurança”. Sem dúvida, o padrão do Estado de Exceção.

Como se vê, há um circo montado que vai além das fronteiras do Rio de Janeiro, mas que interessa a diferentes esferas de poder e governo. E interessa à mídia que, neste momento, se alia ao governo federal (e ao PT) na criminalização dos protestos. Os movimentos que estão hoje nas ruas são, em geral, aqueles que o PT não conseguiu cooptar após 12 anos de poder, oferecendo favores e verbas ou, à moda antiga, tomando para si ou para aliados direções em sindicatos e movimentos.

Chegamos a ver militantes destacados do Partido dos Trabalhadores criminalizando a greve dos metroviários em São Paulo – uma greve em tese contra o PSDB, partido inimigo – apenas porque se dava próximo à abertura da Copa do Mundo! Os interesses internos e de manutenção do próprio poder são mais importantes que os interesses de classe e de trabalhadores que historicamente eram apoiados pelo partido.

Jornalismo comprometido com causas sociais

A mídia em geral possui interesses opostos aos desses grupos, assim como, neste momento, o tem PT e governo federal, que não aceitam ver movimentos além de seu controle e muito menos causando problemas e prejuízos à imagem de Dilma e demais aliados. E neste ponto há convergência mesmo com o PSDB, historicamente avesso a qualquer tipo de atividade nas ruas que não sejam carros passando – ou parados em engarrafamentos. O momento é ainda mais dramático porque não apenas verificamos essa confluência de interesses de diversas partes, de diversas esferas e mesmo entre os maiores partidos políticos do país, como também vemos poucas saídas.

Eloisa Samy, David Paixão e Camila Nascimento, três dos 23 perseguidos políticos neste momento, buscaram asilo para fugir à perseguição que enfrentam. O asilo foi negado pelo Uruguai, país com fortes laços com o Brasil, sob argumentos pífios, como chegou a explicar em seu Facebook a professora Daisy Ventura. Os argumentos foram do risível – de que um consulado não seria local para pedido de asilo – ao inacreditável – de que dar o asilo seria reconhecer que o Brasil não seria um país democrático. Oras, o Equador garantiu asilo a Julian Assange, do Wikileaks, em sua embaixada em Londres e em momento algum aventou-se a possibilidade do Equador estar anunciando que a Inglaterra não seria uma democracia. O mesmo vale para a Rússia que garantiu asilo/refúgio a Edward Snowden.

No fim, os conchavos políticos parecem ter saído mesmo da esfera nacional. Para deleite da mídia, Globo em particular, que pôde narrar toda a saga de Eloisa e demais refugiados para uma audiência ávida e não necessariamente crítica.

A situação dos direitos humanos no Brasil vai de mal a pior (em diversas áreas, desde a questão indígena, passando pelos direitos das mulheres e LGBTS, até culminar na total criminalização do direito ao protesto), e infelizmente amplos setores da grande mídia demonstram, entusiasmados, que concordam com tudo. Não aprenderam nada do período em que apoiaram a ditadura. Lembrando que a Rede Globo sequer se desculpou pelo apoio dado – e recebido.

Cabe aos democratas, aos defensores dos direitos humanos e todos aqueles que ainda acreditam nestes valores e também na possibilidade de se fazer um jornalismo comprometido com causas sociais e com os interesses da população lutar contra essa nuvem negra que estacionou sob nossas cabeças. Antes que seja tarde.

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Jornalismo não é entidade alienígena e exige responsabilidade

Sininho, o nome de guerra da ativista Elisa Quadros, teve a vida devassada desde que surgiu como liderança ou figura proeminente dos protestos de junho no Rio de Janeiro. Ativista com boa interlocução com e entre vários movimentos, chegou a ser capa do panfleto neofascista Veja e foi duramente perseguida, de forma mais que irresponsável, pela mídia – em especial pela Globo – nos dias que se seguiram à sua prisão e à de outros ativistas um dia antes da final da Copa do Mundo.

Já escrevi bastante sobre os eventos que levaram à prisão política de ativistas, alguns chegando ao ponto de pedir asilo político. O que me interessa aqui, porém, é entender esta aura de infalibilidade ou ao menos de ser intocável a que a mídia ou o “jornalismo” parecem ter direito.

Antes de mais nada deixo claro que acho condenável qualquer ato de violência contra profissionais da imprensa, mesmo que este seja Reinaldo Azevedo ou Paulo Henrique Amorim. Porém, é preciso exigir responsabilidade e, acima de tudo, não buscar ampliar a criminalização daqueles que foram atacados pela mídia.

Na saída do presídio, depois de dias de prisão arbitrária e ilegal, amigos de Sininho, Igor e Camila que estavam sendo soltos se estranharam com fotógrafos e jornalistas que acompanhavam a libertação. Fotógrafos são como urubus atrás de carniça, e não digo isso, acreditem, de forma negativa, pois eu mesmo atuei em protestos da mesma forma diversas vezes. Fotógrafos incomodam, estão na frente – e muitas vezes são alvos involuntários. Queremos a melhor foto, nos misturamos com a turba e, no entanto, é preciso entender o clima em que se deu a soltura dos presos políticos.

Clima de revolta. Compreensível.

Não foi o “jornalismo” o responsável por tudo isso

Escrevi ao Correio da Cidadania:

“O caso dos 23 perseguidos políticos, que tem em Elisa Quadros, a Sininho, o principal alvo da mídia global, demonstra quão perigosa para a democracia pode ser a relação entre um grupo de comunicação e governos, a polícia e setores do judiciário. Sininho tem sido alvo de acusações que parecem roteiro de novela de péssima qualidade, algo que a Globo tem experiência em produzir.”

Roteiro macarrônico de novela de quinta em que uma única pessoa parece ter tomado a frente em uma campanha para queimar edifícios públicos, tocar o terror e tudo isso sem que o real propósito sequer fosse mencionado.

O que moveria Sininho? Qual sua motivação e objetivos? Isto os veículos do Grupo Globo não conseguiram ainda bolar. Os personagens e a trama estão dispostos em um cenário quase apocalíptico, mas ainda não conseguiram encaixar detalhes fundamentais à trama.

Tampouco conseguiram explicar como pessoas que nunca se viram na vida estão relacionadas e como elementos anarquistas teriam função de direção em organizações hierárquicas. O enredo da novela global simplesmente não bate com a realidade, ainda que esta nunca tenha sido a preocupação.”

A mídia, e em especial a Globo, transformou as manifestações contra a Copa em uma novela. Teatralizaram tudo e, no processo, tentaram destruir vidas. O jornalismo foi usado no serviço sujo de destruir reputações e vidas e o jornalismo sujo e irresponsável deste e de outros veículos poderia ter acabado com a vida de ativistas e os feito passar anos presos. Tudo, porém, não passava de pura e simples armação. Teatro.

Mas não foi o “jornalismo” enquanto algum tipo de entidade cósmica o responsável por tudo isso. Foram jornalistas, pessoas de carne e osso. Mesmo que não tenham sido exatamente os que estão nas linhas de frente nos protestos, reportando enquanto tomam pimenta da PM, enquanto fotografam e são agredidos pela polícia, são colegas destes, são os que estão nas redações ou mesmo os editores que impunemente inventam o que querem.

Vergonhoso e manipulador

Não, não é o “jornalismo” o culpado, é a classe jornalística (ou parte dela). São tanto os que diretamente manipulam quanto os que calam e consentem. Longe de apoiar ou aplaudir qualquer tipo de agressão a um jornalista – oras, eu estaria também pedindo para apanhar, ainda que até o momento só tenha apanhado da PM, como a maioria dos profissionais da imprensa –, eu entendo o que é a raiva de ser incriminado pela mídia, pelo “jornalismo”, por jornalistas. A raiva é mal direcionada, sem dúvida. É burra? Sem dúvida. Contraproducente? Lógico. Mas não é de forma nenhuma incompreensível.

O jornalismo enquanto entidade “cósmica” tornou intocáveis e inatacáveis os jornalistas que, sem qualquer responsabilidade, usam seu espaço na mídia para destruir reputações e perseguir desafetos. É difícil entender por que, depois de dias presa, Sininho se mostravarevoltada e com raiva ao ser questionada por jornalistas dos mesmos veículos que batalharam para que ela fosse presa? Este último link, aliás, me deixa claro o despreparo e a provocação barata de um jornalista contra uma pessoa que foi criminalizada pela imprensa. Provocativo, sem buscar entender o outro lado, como se com o orgulho ferido porque Sininho não estava dócil e sorridente esperando responder às perguntas da imprensa.

O jornalismo praticado pela grande mídia no Brasil, salvo exceções, é vergonhoso. É manipulador e sequer mereceria ser chamado de “jornalismo”. Mas é o que temos e com a conivência em muitos casos dos jornalistas empregados por esta mídia (sim, muitos se revoltam, muitos têm famílias e não podem se dar ao luxo de reclamar, mas muitos outros têm prazer em fazer aquilo que manda o patrão. Há de tudo).

“Jornalismo” vem de jornalistas

Não adianta apenas lamentar e repudiar ataques contra membros da imprensa, é preciso também buscar entender as razões e lutar contra quilo que torna a imprensa, em muitos casos, mero capacho do poder.

Os jornalistas, editores e demais responsáveis pela “cobertura” do teatro que virou a vida da Sininho mereceriam, no mínimo, processos por calúnia e difamação. Falta responsabilidade à mídia. Falta responsabilização. Especialmente de patrões, mas também de quem se submete alegremente. Aos colegas jornalistas que corretamente se juntam para reclamar de agressões sofridas, se juntem também – nos juntemos também – contra patrões que obrigam a produção de péssimo jornalismo e contra os que, felizes, conhecem apenas o jornalismo dos poderosos e o reproduzem com prazer.

Depois de colegas ficarem cegos pelas balas da PM, depois de centenas de casos de violência policial contra jornalistas me parece intolerável que não haja qualquer reação a isso e que o “jornalismo” praticado pela grande mídia continua a ser tão vergonhoso, enviesado e criminalizador.

E “jornalismo” não vem do nada, mas sim, do trabalho de centenas de profissionais. E estes profissionais podem ser um André Caramante ou uma Eliane Brum, de fato, mas também podem ser Reinaldo Azevedo ou Paulo Henrique Amorim.

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Raphael Tsavkko Garcia é jornalista, doutorando em Direitos Humanos (Universidad de Deusto) e mestre em Comunicação (Cásper Líbero)