Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Pior do que bisbilhotar

Há cerca de um ano, repercutiram como escândalo as revelações do ex-agente Edward Snowden sobre a extensão da espionagem americana no Brasil, que incluía até grampos nos telefones da presidente Dilma. O nosso governo indignou-se com razão, protestou com veemência, convocou o embaixador deles para dar explicações, e o desconcertante episódio deixou embaraçado o próprio Obama na reunião do G20, em 2013, na Rússia. Quase houve uma séria crise diplomática. Os EUA, pelo menos, tinham como álibi a paranoia de sempre, a ameaça terrorista. Mas e agora? O que é pior, gravar conversas telefônicas para bisbilhotar o que se diz ou interferir clandestinamente em textos de uma autoproclamada enciclopédia, adulterando-os e deturpando-os com falsas informações para difamar a reputação de jornalistas, como fizeram com Míriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg, a partir de computador que se utiliza da rede do Palácio do Planalto?

O governo também condenou a ação, mas começou alegando que era “tecnicamente impossível identificar os responsáveis”, para depois prometer apuração em 60 dias. “Nossa rede de wi-fi é usada por muita gente em reuniões”, justificou Gilberto Carvalho, ministro da Secretaria-Geral da Presidência, que considerou o ato “abominável”, sem explicar, porém, por que não existe controle sobre acesso e uso dos computadores do palácio. Pedro Doria, por exemplo, revelou, em sua coluna Vida Digital de ontem, que nos últimos dez anos algum palaciano “dedicou-se com afinco à edição de artigos” para a mesma Wikipédia.

Hierarquia do saber

Aliás, por falar nela, que hospedava os perfis dos dois jornalistas, não é a primeira vez que esse tipo de intromissão indevida acontece ali. O colunista Merval Pereira acaba de saber que, a partir de 2011, teve seu perfil na página alterado seis vezes para “acrescentar comentários desairosos ou informações falsas”, de origem não identificada. Talvez porque desconfie da internet desde que ela anunciou minha morte há anos e parece que ainda não conseguiu provar, nunca confiei na tal “enciclopédia livre que todos podem editar”. Se todos podem editar, podem adulterar também, como ficou provado.

Para quem é do tempo em que dicionários como o “Aurélio” (Buarque de Holanda Ferreira) e o “Houaiss” (de Antônio) eram feitos por equipes especializadas que pesquisavam, checavam, comparavam palavras e verbetes, paciente e criteriosamente, durante anos de trabalho conjunto, orientado e supervisionado por dois mestres da língua, como acreditar numa obra em que qualquer um pode dar um pitaco, “democraticamente”, como se não houvesse uma hierarquia no saber, como se umas pessoas não fossem mais credenciadas do que outras para as tarefas do conhecimento?

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Zuenir Ventura é jornalista