Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Boa noite e boa sorte

As equipes e sua parafernália já deixaram Ferguson. Os jornalistas, cinegrafistas e produtores que chegaram a superar, em alguns momentos, o número de manifestantes, voltaram para suas casas, longe de “flyover country”. Esta expressão idiomática americana é usada para definir com sarcasmo a massa continental entre Nova York e Los Angeles, sobrevoada por aqueles que, não é coincidência, têm mais voz para definir o miolo do país do que seus habitantes.

Repórteres russos, alemães, franceses, ingleses, japoneses e de diversos países árabes transmitiram ao vivo do subúrbio empobrecido de Saint Louis. Parte dos 21 mil habitantes de Ferguson foram parar lá em fuga da violência em bairros do Norte da outrora orgulhosa cidade que um hiperbólico articulista do jornal New York Tribune chamou, em 1870, de “futura capital da civilização ocidental.”

Atléticos e bem maquiados âncoras das redes nacionais invadiram a pequena área onde o corpo do adolescente Mike Brown, perfurado por 6 balas disparadas por um policial branco, foi encontrado caído, no dia 9 de agosto. Enquanto a estação de TV local debatia se estava estimulando a violência com transmissões ao vivo, “play by play”, um desavisado morador correu o risco de sair careca do barbeiro porque, justo quando foi aparar o cabelo, a CNN chegou e o manteve na cadeira durante muito tempo – a cena servia de bom fundo visual para entrevistas.

Comentaristas norte-americanos exclamavam, indignados “isso aqui parece Bagdá!”, demonstrando ignorância dupla, sobre o coração do seu país e sobre a origem da tragédia sectária em Bagdá.

Arte da pergunta

Ferguson não é Bagdá ou Gaza. E é um desserviço cruel para seus moradores usar a cidade como tabula rasa para projetar qualquer outra crise, seja a revolta dos imigrantes árabes nos subúrbios franceses ou as revoltas em Londres, em 2011. Uma diferença importante é que a polícia americana atira muito mais, e atira para matar.

Além de impor disciplina federal à incompetente investigação da morte de Brown, em nada vai melhorar as vidas de Ferguson a visita do ministro da justiça de Obama, Eric Holder, declarando que além de ministro, é um homem negro. Os indignados das costas Leste e Oeste podem se sentir melhor, mas é pedir demais a um pequeno subúrbio, afundando sob os efeitos da recessão de 2008 e da transformação econômica que marginaliza tantos trabalhadores, que se preste a ritual de purificação para os pecados centenários da história racial dos Estados Unidos.

Entre os oportunistas, nada mais asqueroso do que comentaristas da rede de TV de Vladimir Putin, Russia Today, e seu regozijo com a chance de representar o país como uma ditadura e, pasmem, o aiatolá Ali Khamenei, o Líder Supremo do Irã, recomendando aos americanos, pelo Twitter, que leiam Raízes, de Alex Haley, para compreender Ferguson sob a ótica da escravidão. Os tweets do aiatolá Khamenei são em inglês, não em farsi, e, já ia me esquecendo, o Twitter é sistematicamente censurado no Irã, assim como o Facebook.

Em seu documentário clássico de 1984, Cabra Marcado Para Morrer, o saudoso Eduardo Coutinho mostrou de maneira corajosa o poder das câmeras para influenciar eventos.

Vale notar que passaram-se dez dias até que uma rede nacional americana noticiasse a morte de Trayvon Martin, o adolescente negro morto por um vigilante branco porque caminhava num condomínio da Florida em 2012. A triste ironia é que a cobertura local é vítima do encolhimento de organizações jornalísticas americanas, com a ruptura trazida pela tecnologia digital. O melhor é fazer perguntas como se estivessem num país estrangeiro, recomenda a antropóloga e jornalista de Saint Louis Sarah Kendzior.

P.S. Esta coluna deve parte de suas informações à equipe incomparável do programa On The Media, da rádio pública nova-iorquina WNYC, que dedicou vários segmentos à cobertura de Ferguson.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York