Na segunda metade do século 19, os principais países europeus instituíram sistemas básicos de ensino para toda a população. A alfabetização em massa permitiu, na virada do século 20, o surgimento de jornais de grande circulação. A influência crescente dos tabloides sensacionalistas londrinos levou os lordes do Parlamento britânico a identificar na imprensa de massa o quarto poder da democracia. De fato a mídia que surgia teve um papel crucial quando as potências europeias conduziram seu povo ao matadouro de 1914, levando as primeiras gerações formadas nas escolas públicas do continente a marchar para a guerra em grande júbilo e exaltação patriótica, demonizando seus inimigos, enaltecendo seus heróis, alardeando suas vitórias e escondendo suas derrotas.
Anos depois, o arsenal do quarto poder ganha uma arma mais poderosa – o rádio. Adolf Hitler estimula a fabricação e financia a compra de rádios populares, para que toda a família alemã tivesse acesso à sua propaganda política, eficiente ao ponto de levar um dos povos mais instruídos do mundo a embarcar na loucura do nazismo. A libertação da necessidade de alfabetização de seu público com o rádio permite à imprensa chegar a levas cada vez maiores de seres humanos em todo o planeta – nós, como herança da época, recebemos A Hora do Brasil, polêmico componente do que foi a “era do rádio”.
Na segunda metade do século 20, os instrumentos da mídia tornam-se a principal arma do conflito entre as superpotências. Com a ameaça do holocausto nuclear, a sanha militarista teve que ser contida e na guerra fria a principal disputa era para conquistar a mente das pessoas. Os camaradas soviéticos e comunistas do mundo todo montam uma rede de mídia para propagar os benefícios do novo sistema; do outro lado, Eugene McCarthy toca a trombeta em defesa da família, religião e propriedade que ecoa no mundo inteiro. A comunicação de massa passa a ser elemento constitutivo essencial em qualquer esquema de poder e o marketing político foi incorporado ao jogo nas grandes sociedades urbanizadas.
Império poderoso e influente
O advento da televisão impulsionou aos píncaros o quarto poder. Em nosso país já tínhamos grandes grupos de comunicação, influentes no meio político, quando a TV engatinhava – o maior exemplo eram os Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Mas foi nos anos 1970, com investimentos importantes da ditadura militar no desenvolvimento das telecomunicações e a massificação na comercialização dos aparelhos receptores, que surgiram os grandes oligopólios das comunicações, que imediatamente passam a ocupar posição de centralidade no esquema do poder político, crescente até hoje.
Os grandes grupos empresariais que dominam as comunicações no Brasil foram forjados durante a ditadura militar e em estreita associação com a mesma. Tanto joão Saad, quanto Sílvio Santos tiveram que seguir os passos de Roberto Marinho para conseguir um papel de coadjuvante (hoje acompanhados pelo caçula Edir Macedo) no grande império global que surgia. Os ditadores abriram os cofres de várias formas para seus parceiros na mídia, distribuíram as concessões necessárias e eliminaram a concorrência, sufocando economicamente, como fizeram com o Jornal do Brasil, ou simplesmente cassando a concessão, como fizeram com a Excelsior. Em contrapartida, o silêncio quanto à repressão política e à tortura e propaganda massiva do governo.
Acabou a ditadura, mas não no universo das comunicações. José Sarney distribuiu quase uma centena de concessões de emissoras para as grandes redes. A cartelização do setor é cada vez maior e quaisquer meios alternativos que tentem furar o bloqueio são tratados como crime e pirataria. A Globo assume a liderança incontestável definindo um padrão a ser seguido e a presença da TV nos lares brasileiros torna-se absoluta, indicando do que rir, do que chorar, o que consumir e em quem votar. A Globo faz e derruba presidentes, como foi o exemplo de Fernando Collor. O império da mídia é cada vez mais poderoso e influente, indispensável para salvaguarda do poder dominante ante quaisquer ameaças e imprevistos, como quando a Globo destruiu a alternativa política que representava o trabalhismo de Brizola.
Iniquidade e ilegalidade
Que diriam os lordes britânicos que apelidaram jornalistas, por vezes zombeteiramente, como membros de um quarto poder, ao ver que hoje o monopólio da mídia não é apenas um auxiliar, mas um protagonista importante do jogo do poder? Que diriam ao ver deputados, juízes, prefeitos e governadores disputando favores e mendigando afagos da mídia, um minutinho no Jornal Nacional? Ficariam decerto estarrecidos ao ver que a Globo é não o quarto, mas o primeiro poder da nossa República. E a retribuição é generosa em todo tipo de vantagens: verbas de publicidade, incentivos e isenções fiscais, desvio de recursos do Fundeb, que seriam das crianças e educadores do Brasil, para a empresa através de sua Fundação Roberto Marinho, isso para não falar em procrastinação de processos judiciais incômodos e vista grossa à sonegação fiscal, tudo para dar musculatura ao que vem se transformando no principal esteio do poder no Brasil.
A postura imperial de William Bonner na bancada do JN espelha bem a arrogância desse novo poder dominante, que precisa dela pois se nutre da inexistência de contestação. Hoje, a garantia da ordem e do funcionamento do sistema não depende mais do chicote do feitor ou do tacão dos militares, mas de um sofisticado sistema de monopólio e manipulação da informação, controlado pelos barões das comunicações, que mexem as cordinhas no imenso teatro de marionetes em que estão transformando o Brasil. Quando nosso carcomido sistema político ficou atordoado, sem saber como lidar com a emergência das demandas populares que começaram a espocar nas ruas, foi a Globo que comandou a reação, montando uma campanha midiática avassaladora, com meios sofisticados de semiótica, para criminalizar os protestos e os movimentos sociais.
Os políticos, que andavam acuados, e as forças da repressão, meio desalinhadas, sacudiram a poeira e voltaram a carga, sob a bandeira de seu novo líder, a Globo. Um processo sórdido, digno dos tempos sombrios dos anos de chumbo, foi urdido para prender ativistas. Apoiado com grande espalhafato e linchamento da mídia, que chegou a voltar sua sanha caluniosa contra entidades sindicais de nossos trabalhadores. Nem posso expressar direito a indignação com que vi meu sindicato apontado nas páginas do jornal O Globo como financiador do terrorismo. O Sepe [Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação] é um patrimônio da população do Rio de Janeiro, agente importante na reconstrução da democracia em nosso país e baluarte da cidadania em defesa da escola pública e foi enxovalhado por essa mídia tendenciosa que, apoiada por geniais investigadores do Beltrame, descobriu que sindicatos financiam manifestações.
Professores grevistas são perseguidos cruelmente pelas secretarias de Paes e Pezão, garis grevistas são demitidos e é silêncio no rádio, nenhuma nota passa no filtro das redações. Pobres, em sua maioria negros, são assassinados pela polícia diariamente em nossa cidade, quase sob o aplauso da imprensa, uma verdadeira histeria engendrada por programas sensacionalistas que exploram a violência urbana pede mais polícia. Ao mesmo tempo, casos como o da meia tonelada de cocaína encontrada no helicóptero do senador Perrela são sepultados em completo esquecimento. Toda iniquidade e ilegalidade exercida pelo poder é encoberta e justificada, para os cidadãos comuns polícia e demonização dos contestadores, como que numa reedição moderna da Inquisição medieval. Quem sabe para nós, danados aqui embaixo, sujeitos à convivência com anjos decaídos e vassalos rebeldes, reste o único consolo de ver nossos algozes pularem do quarto poder para o quinto dos infernos.
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Eduardo Paparguerius éjornalista, mestre em História e artista plástico