Não se espante se, na próxima manifestação, você vir um jornalista da grande imprensa circulando e registrando tudo de dentro de um miniblindado (algo assim, tipo um caveirão em miniatura), produzido especialmente para ele. Também não se assuste se vir um determinado efetivo da polícia destacado especialmente para carregar jornalistas munidos de câmeras, gravadores e microfones numa posição suficientemente elevada do chão, um pouquinho no alto, para garantir que eles não percam nenhum ângulo privilegiado de visão e nem tenham muito contato com manifestantes. Não sei se dá tempo de colocar em prática já para as manifestações que parece que vão acontecer no próximo 7 de setembro, mas essas são algumas ideias que ofereço, gratuita e generosamente, ao secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, que, numa atitude inédita, recebeu no seu gabinete quatro profissionais que representavam um “movimento” “criado” provavelmente na véspera e lhes prometeu “ajuda para conter violência contra jornalistas do Rio”.
Essas ideias me ocorreram depois de um grande esforço para imaginar que medidas concretas um secretário de Segurança poderia tomar para proteger apenas uma parcela da população, um grupo específico (tem que mostrar carteirinha?) inserido em manifestações que ocorrem no meio da rua, em locais públicos e que, quando resultam em violência, podem atingir a todos indiscriminadamente, mesmo aqueles que estavam apenas de passagem, indo ou voltando para o trabalho. Para início de conversa, seria bom que os representantes do movimento que tenta fazer da violência contra jornalistas o maior problema de segurança pública do estado, decidissem se seu argumento é que são simples trabalhadores impedidos no seu direito de trabalhar ou se precisam de proteção porque são agentes que cumprem “a missão democrática de manter a sociedade informada”, como diz a carta que entregaram ao sr. Beltrame.
Aos que de fato querem apenas garantir o seu direito de trabalhar – aos quais me junto e solidarizo –, lamento informar que o secretário de Segurança não costuma abrir sua agenda para receber trabalhadores comuns organizados. Já os que realmente se veem como guardiões ou porta-vozes da democracia, contraditória e lamentavelmente estão criando argumentos para justificar os atos violentos, colocando-se na frágil posição de ter que responder pessoalmente pelo fracasso dessa tal “missão”. Ao atribuírem ao seu trabalho um papel de destaque para a democracia, assumem junto, no mesmo pacote, a maior responsabilidade sobre as consequências que o seu trabalho gera para o conjunto da população, o que, neste momento, significa justificar aqueles que os responsabilizam pessoalmente pela cobertura criminalizadora das manifestações que a maior parte dos grandes veículos de comunicação tem feito, principalmente o/a Globo.
Dois pesos, duas medidas
A carta entregue ao secretário começa afirmando que “como já é do seu conhecimento”, “o Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro vive a maior crise de representatividade dos seus quase 80 anos de existência”. Deixando de lado a discussão sobre essa crise de representatividade, que curiosamente não se expressa no voto nem nas maiorias presenciais, a pergunta que não quer calar é como e por que o secretário de segurança pública de um estado saberia do problema de uma categoria específica com o seu sindicato. Ou estamos diante de mais uma expressão da arrogância de jornalistas que se acham o centro do mundo, e por isso deduzem que o secretário de segurança não tem nada mais importante para fazer além de acompanhar as questões corporativas de um grupo de profissionais, ou essa certeza denuncia outros níveis de relação entre quem apoia esse movimento –que inclui, com destaque, as grandes empresas de comunicação, Globo à frente –e a cúpula do governo do estado.
Feito esse alerta, sigamos adiante. Depois de contextualizar o problema e caracterizar a postura da diretoria do sindicato como “hesitante” na defesa da categoria –o que garante a legitimidade da crítica ao mesmo tempo em que expõe o golpe, porque não se pode conceber que se peça a renúncia de nenhuma direção democraticamente eleita apenas por “hesitação” –, a carta apresenta os números. Explica que, nos últimos 12 meses, “90 profissionais da imprensa saíram feridos de coberturas semelhantes” àquela em que o cinegrafista Santiago Andrade foi morto, atingido por um rojão. Na sequência, o texto traz uma informação essencial, mas que, na carta dirigida ao secretário, passa quase despercebida. A informação é de que “dois terços das agressões foram cometidas por integrantes das forças policiais; um terço, por ativistas”. Ou seja, o protagonismo da polícia comandada pelo sr. Beltrame na violência que tomou conta das manifestações no Rio de Janeiro se expressa também entre os jornalistas agredidos. Portanto, bastaria que a instituição comandada pelo sr. Beltrame fosse menos violenta e antidemocrática para que esses números –e seus efeitos práticos –reduzissem drasticamente não só entre jornalistas como na população como um todo. Basta ter participado de algumas manifestações em que houve repressão policial para saber que, muito provavelmente, isso reduziria também as agressões que estão no outro um terço –embora, evidentemente, isso não justifique as ações violentas dirigidas diretamente a ninguém.
A morte de Santiago Andrade tem sido recorrentemente citada como exemplo da violência que precisa ser contida entre os manifestantes. Mas a fragmentação e o sensacionalismo que marcam o jornalismo da grande imprensa nos fazem esquecer, por exemplo, de que a primeira informação, trazida por um jornalista da GloboNews que estava no local, foi de que os morteiros teriam partido da polícia. A sequência de fatos mostrou que ele estava errado; os responsáveis foram localizados e não eram policiais. Mas se não houvesse um cenário de violência policial, que poderia igualmente ter ferido ou matado qualquer um, o jornalista da Globo News não poderia ter se confundido.
Sacudida na esperança
O fato é que a carta entregue pelos representantes do movimento batizado com o nome “Viva Santiago” perde a oportunidade de fazer a única denúncia ou reivindicação sobre esse assunto que seria cabível no diálogo com um secretário de Segurança Pública. A frase que mostra o quanto a polícia do sr. Beltrame é a principal responsável pela violência nas manifestações, conclusão objetiva que o sindicato dos jornalistas do Rio de Janeiro vem denunciando em todos os espaços possíveis, na carta dos indignados aparece sozinha, sem conectivos que expressem qualquer relação de causa e consequência ou permitam tirar qualquer conclusão, escondida no final de uma frase, sem ponto parágrafo. O documento não só não desdobra as consequências desses números, que são objetivos o suficiente para não passarem despercebidos por jornalistas experientes como aqueles que hoje representam o tal movimento, como faz o contrário, usando palavras (aquelas tão caras a nós, jornalistas) que explicitamente amenizam a responsabilidade da polícia. É assim que, no final, ao solicitar que as autoridades “atuem para evitar atos que ponham em risco a integridade física dos jornalistas profissionais”, os autores da carta caracterizam a agressão por parte do Estado como “abusos cometidos por policiais” enquanto as agressões por parte de manifestantes são tratadas como “ataques violentos de ativistas” (grifos meus). O fato de durante a última plenária que tratou do tema o jornalista Fernando Molica, que é um dos representantes do tal movimento, ter acusado a direção do sindicato de fazer a mesma distinção, só que no sentido contrário, usando nas suas notas de repúdio palavras mais duras para criticar a violência policial do que a violência praticada por manifestantes, é um forte indício de que, mais do que um ato falho, a escolha das expressões da carta foram perfeitamente conscientes.
E isso nos traz uma desconfiança e um lamento. A desconfiança é de que os termos da carta foram negociados antes, de modo a não criar constrangimentos para um governo que, afinal, abria suas portas para acolher a causa de jornalistas que transformaram a legítima indignação de muitos contra a violência que atinge o trabalhador da imprensa num golpe político midiático articulado pelo alto e protagonizado por figurões que muito bem representam os interesses das empresas em que trabalham. O lamento é de que parte significativa dos jornalistas que seguem esse movimento sem protagonizá-lo são vítimas também do modelo de jornalismo que nos rege, da fragmentação e do sensacionalismo de um jornalismo que precisa produzir conclusões rápidas, sem sair da superfície; que sacrifica a objetividade em nome da produção de uma indignação coletiva que diariamente instrumentaliza as dores e tragédias pessoais. Só isso justifica a naturalização de atitudes cujo único efeito será aumentar a repressão (ou alguém tem outra ideia de como a Secretaria de Segurança Pública pode atuar para “evitar atos que ponham em risco a integridade física dos jornalistas profissionais”?), intensificar a atitude de intolerância e desrespeito à democracia e, consequentemente, banalizar a violência generalizada: um sintoma do grau de distanciamento que essa profissão tomou em relação à sociedade a que ela deveria servir.
A notícia boa é que não são todos. Nem maioria. A juventude que lotou o auditório na última plenária do sindicato dos jornalistas mostrou que jornalista profissional vai muito além daqueles que ocupam os “aquários” da grande imprensa e, sem se intimidar com os argumentos de autoridade que os “experientes” quiseram lhe impor, deu uma aula de leitura da realidade, um show de generosidade e uma sacudida na esperança de quem andava abatido. E é daí que tiro energia para gritar àqueles que, em nome da categoria profissional que um dia eu escolhi para mim, estão tentando impor a mediação da polícia na relação dos jornalistas com a sociedade: Arnaldo Cesar, Fernando Molica, Flavia Oliveira e Marcelo Moreira, com todo respeito, vocês não me representam!
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Cátia Guimarães é jornalista