A imagem não deixava dúvidas. Uma torcedora do Grêmio, de pele e cabelos claros, gritava para quem quisesse ouvir: “Macaco!”, dirigindo-se ao goleiro Aranha, do Santos. Flagrada e reconhecida, veículos de comunicação do Brasil inteiro (e até estrangeiros) repercutiram o gesto absurdo, nas capas dos jornais e dos sites, nas imagens em slow motion nas TVs. Especialistas nem precisaram ser recrutados para fazer leitura labial: estava evidente… “ma-ca-co”.
O grito da moça, que o Brasil inteiro iria saber que se tratava de Patrícia Moreira, auxiliar de odontologia, era ladeado por outros torcedores que imitavam grunhidos e gestos símios. Com moderação, a imprensa também reproduziu essas imagens. Foi tratado como “curioso” e “incompreensível” o fato de haver torcedores negros em atitudes racistas. Atônita, a mídia esportiva que estava lá para trazer o resultado, os melhores lances, teria que lidar com uma questão muito complexa e humana.
Zonzos, os repórteres cinematográficos recebiam orientações desesperadas do próprio Aranha para que filmassem as atitudes racistas. Como a cobertura esportiva está de olho só no campo de jogo, os torcedores são tratados como massa que grita ou que vaia, que canta ou que sofre, sempre à distância. Que tomam atitudes que não fariam por iniciativas individuais. “Rivalidade é assim mesmo”, há quem aponte. Somente depois de muita insistência do atleta ofendido as câmeras giraram para trás do gol. O time do litoral paulista ganhava o jogo em Porto Alegre válido pela Copa do Brasil. Os torcedores rivais não admitiam o revés.
Experiência similar
Era a oportunidade, então, para representações de selvageria, como tantas vezes ocorre. A sociedade organizada olha de longe com ar de nojo e complacência. “É normal, é futebol”, há quem brade. Não raro, quem paga R$ 50, R$ 100, R$ 200 para assistir a um jogo no estádio costuma criticar os preços do teatro, do cinema, de um livro. Mas no estádio, em catarses coletivas, estranhas e inadmissíveis, acham-se em direito de disparar xingamentos contra negros e puxarem cantorias de guerra, pedirem a morte do oponente… Homofobia, então, é uma regra nesse mundo paralelo e intolerante. Como numa arena romana, os torcedores gritavam enlouquecidos.
A imagem de Patrícia Moreira era a mais nítida e, por isso, estampada como um cartaz pelos veículos: “Procura-se”. Não demorou muito tempo para que detalhes da vida da suspeita viessem a público. Nos dias que se seguiram, perdeu o emprego, apavorou a família, teve a casa apedrejada e foi intimada a depor, quando pediu muitas desculpas ao Grêmio, excluído da competição, e repetiu como um mantra que não era racista.
Enquanto ainda se dava a cobertura esportiva, a imprensa passou a procurar a delegacia, outro campo que trata temas complexos com uma relação binária, culpada ou não, presa ou não, racismo ou não. Patrícia experimentou um pouco pelo que passam suspeitos pobres, sem recursos para advogado, que veem suas imagens expostas sem ter dado autorização. No Brasil real, a cobertura policial trata os mais humildes de forma bárbara e ninguém repercute os efeitos como os que ocorreram com a moça loira de pele branca. Quantas pessoas que provaram depois serem inocentes perderam emprego e tiveram a casa e a vida apedrejadas?
Pedir perdão
A história de personagem único dentre milhares expõe a falta de investigação jornalística no caso. Nas reportagens, não há informações de bastidores, testemunhas ou documentação o suficiente para ir além da imagem da Patrícia. Não existem apurações nas torcidas organizadas ou sobre fatos que antecederam os gestos. Afinal, o repórter de esportes fica atribulado com a missão de saber quem vai ou não jogar, se foi pênalti ou não. Não foi a primeira vez (muito longe disso, o racismo nos campos de futebol é fenômeno brasileiro e mundial) nem será a última, e mesmo assim, o assunto ainda é tratado com desdém, como uma raridade. Os repórteres não vão para o meio da torcida.
Isso tudo causa a descontextualização. Para se safar dessa arapuca de priorização na apuração, as reportagens precisam se escorar na cobertura declaratória. “Grêmio diz que expulsa sócios”, “Ministério Público diz que vai cobrar autoridades”, “Ex-dirigente do Grêmio diz que Aranha não é santinho”, “Presidente do Grêmio acusa auditor do STJD de racismo”… e por aí vai.
É evidente que a moça estampada pela mídia não foi a única a ter uma atitude racista. Mas, como faltou apuração, a personagem foi trazida para todas as narrativas jornalísticas. A personagem é um fio condutor da notícia. Seria impreciso e fraco se a imagem dela não fosse utilizada. O erro está em tornar o caso individual, dando a impressão que Patrícia foi tomada como “bode expiatório” e foi “superexposta”… Não são ouvidas as mesmas alegações quando os suspeitos são negros e pobres.
No depoimento de Patrícia na polícia, a moça estava emocionada. Ao pedir seguidas desculpas ao Grêmio e um pouquinho ao Aranha, a imprensa reduziu a atmosfera a uma questão de pedir perdão e ao outro aceitar. Uma redução na observação tão simplória quanto o de saber se o clube é excluído ou não da competição.
Goleiro vai virar estatística
Após a decisão do STJD em excluir o Grêmio, outra polêmica veio à tona. A defesa do clube acusou o auditor do tribunal, Ricardo Graiche, de postar conteúdos racistas em rede social.
Nas mensagens divulgadas, que depois ele excluiu, uma criança negra está enrolada a uma marca de refrigerante de cola. Em outra, um homem negro interliga a fiação elétrica para fazer um “macaco” (expressão para conexão irregular). Enfim, mensagens repugnantes de quem deve observar com rigor a lei. O furor pode baixar assim que ele vier a público e pedir desculpas.
Surpreendidos, jornalistas têm demonstrado superficialidade para tratar de questões amplas e enraizadas na cultura nacional, em relação aos crimes de racismo e injúrias raciais. Imagine sobre as ações homofóbicas, que nem tipificadas como crime são na legislação brasileira.
Sociólogos e antropólogos se detêm em pesquisas sobre os assuntos com a seriedade e que os temas merecem. Da mesma forma, são as ciências sociais que têm estudado as torcidas organizadas. Os jornalistas, diferentemente, perdem, em situações como essas, a chance de prestar mais serviço e ligar os pontos soltos, de codificar com mais profundidade, de traduzir a inacreditável intolerância em pleno século 21. Alegam que não dá tempo ser profundo. Têm que publicar logo para garantir a audiência e os cliques que rendem prestígio e anunciantes.
O goleiro Aranha vai virar estatística, uma imagem de arquivo para o próximo caso em que cidadãos torcedores vão pagar ingresso caro para xingar, imitar macacos ou jogar banana no campo. Policiais e jornalistas ficam à distância. Só aparecem se der confusão.
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Luiz Claudio Ferreira é jornalista e professor de Jornalismo