Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A sanha pela criminalização da homofobia

Inicie-se com uma observação: não obstante seu título, este despretensioso artigo não fere o mérito da questão da criminalização da homofobia; em vez disso, ocupa-se apenas e tão somente da discussão dos limites desse debate – para dizer que foram ultrapassados.

Segue-se, então, uma história em três atos, ou em três notícias.

A primeira notíciadiz: “Jovem gay é encontrado morto com bilhete na boca: ‘Vamos acabar com essa praga’.

A polícia acredita que o assassinato de João Donati, que tem traços de crueldade, tem a homofobia como motivação. O corpo da vítima foi encontrado abandonado em um terreno baldio, com as duas pernas e o pescoço quebrados. Além disso, a polícia encontrou João com um bilhete preso na boca, que dizia ‘vamos acabar com essa praga’. O delegado (…), responsável pelo caso, disse ainda não ter pistas dos autores do crime, mas diz ter certeza que a motivação do crime foi homofobia.”

A notícia foi bombástica. De imediato,ouviu-se a grita: mídia reverberando; alvoroço ‘nas redes sociais’ (porque é chato dizer ‘no Facebook’); grupos LGBT e seus candidatos rasgando o verbo; até a secretária de Direitos Humanos do governo federal apareceu (em horário nobre) para exigir o rápido esclarecimento – não pela morte de um garoto de dezoito anos (que infelizmente é só mais um na estatística da violência), mas pela suposta motivação homofóbica.

A segunda notícia, por sua vez, revelou que não havia o tal bilhete (a afirmação era absolutamente falsa), e que pernas e pescoço, aliás, nenhum osso da vítima foi quebrado (mais afirmações falsas). Ainda assim, o clima seguia de caça às bruxas, digo, aos homofóbicos: “Polícia nega bilhete homofóbico em jovem gay assassinado. De acordo com uma representante da Polícia Civil da cidade, ele tinha marcas de agressão no rosto, mas não estava com as pernas quebradas e nem com um bilhete com declarações homofóbicas, como foi noticiado inicialmente por alguns veículos da imprensa. Nas redes sociais, militantes da causa LGBT já organizaram uma série de protestos para exigir respostas das autoridades sobre o assassinato do rapaz e pedir a aprovação da lei que determina a criminalização da homofobia no país.”

Duas obviedades

A terceira notícia, dada quase que afórceps, revelou,enfim,que a vítima foi morta por um outro rapaz (de vinte anos), após uma relação sexual. Ou seja, foi morta após uma relação homossexual, por outro homossexual. Mas claro, como homossexual não mata, nem faz nada de errado, é evidente que é preciso haver um porém nesta notícia. Ei-lo: o assassino confesso não seria gay, mas só um rapaz que gosta de fazer sexo com outros rapazes.

Pois bem, no início dissemos que se tratava de uma história em três atos, ou em três notícias. Como se viu, cada notícia desmentiu a anterior em tudo aquilo que poderia caracterizar uma motivação homofóbica, de modo que o foco deveria estar na última. Todavia, não foi o que aconteceu: a última notícia tornou-se como que um detalhe de somenos importância e o que se seguiu foi o pulular de manifestações, re-vol-ta-dís-simas, bradando pela criminalização da homofobia.

A primeira obviedaderefere-se ao fato de que alguém matou alguém, ou seja, já houve um crime ou dois, um homicídio qualificado (e provavelmente ocultação de cadáver). Logo, ainda que os fatos forjados na primeira notícia fossem verdadeiros a conclusão lógica não seria pela necessidade de criminalização da homofobia, pois o fato já é criminalizado e a motivação pode resultar em aumento da pena.

A segunda, e maior causa de perplexidade, está na inversão de valores: o que deveria chamar a atenção nessa série de notícias não é nenhuma homofobia, que já foi descartada, mas sim a grosseira tentativa de manipulação dos fatos com o evidente propósito de influenciar a opinião pública. Ressalte-se que no caso não se cogita de equívoco: mentiu-se deslavadamente sobre a existência de um bilhete com mensagem de ódio, e sobre ossos quebrados (pernas e pescoço).

A defesa inescrupulosa

Ora, é legítimo que se defenda a criminalização da homofobia, nesse passo, é compreensível que se busque o apoio popular para essa empreitada. O que não é legítimo, nem honesto, foi o que se viu: a manipulação dos fatos, melhor dizendo, a invenção despudorada desses, a mentira.

A situação que temos, então, é a seguinte: por um lado, um caso de homicídio entre homossexuais (crime cometido após um ato sexual), tratado como se fosse um ato de homofobia e repercutindo como tal; por outro, um ato raso, pérfido, instigador do ódio, tratado como um nada, dito e divulgado por ninguém.

Resumo da ópera: se a história mal acabada da breve existência do garoto João demonstrou alguma coisa – além da crueldade humana que o vitimou – não é a necessidade de criminalizar a homofobia, mas sim,o fato de que a sanha pela criminalização desta já ultrapassou os limites da ética e da boa-fé. Vê-se, não só por este exemplo, que em geral o ativismo que agita essa bandeira deixou-se seduzir pelo caminho fácil da defesa inescrupulosa, a qualquer custo, de suas posições. E, tão grave quanto isto, nota-se também que míngua a capacidade de indignação e de reação da sociedade, afinal de contas são chegados tempos em que qualquer passo em falso e a pessoa corre o risco de ser rotulada de homofóbica.

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Paulo Henrique Hachich De Cesare é advogado