“Hoje, o apocalipse está próximo em muitos níveis: ecológico, saturação de informações… As coisas estão se aproximando de um ponto zero, o fim dos tempos se aproxima” […] (Slavoj Zizek, A monstruosidade de Cristo)
Uma imagem de uma mulher negra e sobre seu peito a afirmação: “A Folha é contra as cotas raciais. Eu também”. Quem é esse sujeito oculto – “Eu também” – na campanha da Folha de S.Paulo intitulada “Sistema de cotas: o que a Folha pensa”, que circula em diferentes mídias? Não teria aí uma versão irônica da Folha se colocando onipresente no imaginário social? Em lacanês, a Folha reivindicaria para si o lugar de grande Outro, só que ao invés de um outro que fala através do sujeito é a Folha, em um gesto publicitário – usando a modelo Carol Prazeres como interlocutora –, que se apresenta como o superego do leitor ausente.
Em seguida, outra frase, agora entre aspas: “Não deve haver reserva de vagas a partir de critérios raciais, seja na educação, seja no serviço público. São bem-vindas, porém, experiências baseadas em critérios sociais objetivos, como renda ou escola de origem.” Qual a função das aspas, já que no lugar do autor lê-se: “Essa é a posição da Folha”. Poderíamos arriscar que o Outro presente no discurso da Folha é o que sustenta a moral burguesa.
Lembremos do axioma de Jacques Lacan inspirado no hegelianismo: “O desejo do homem é o desejo do Outro”. O desejo mobilizador vem desse Outro virtual cuja existência depende de uma crença que regula o modo como os indivíduos agem. Com isso, chegamos ao destinatário da mensagem da Folha. “Eu também” funciona na mesma posição discursiva da frase entre aspas, cuja mensagem adquire sua reversibilidade, como se fosse a expressão de um desejo mobilizado pelo Outro. Lacan percebeu no Seminário A carta roubada que “uma carta sempre chega ao seu destino”, mesmo quando extraviada. A quem então se destina a carta? Ao Outro, mas não de carne e osso, mas a esse outro pelo qual sustentamos nosso imaginário, ancoramos nossas crenças. O que a Folha faz, mais do que tomar partido em período eleitoral, é afirmar sua posição para este Outro que sustenta o imaginário do grupo e que está na genealogia do Estado moderno.
A falsa igualdade universal
A pergunta que poderíamos fazer é: qual o excedente que a Folha busca capturar? Recordemos o capítulo “Selvagens, bárbaros e civilizados”, do Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, no qual é mostrado que o cinismo e a piedade integram o evangelho capitalista. Ao invés de fazer a crítica a partir da superestrutura que é determinada pela infraestrutura (em uma apropriação estruturalista do marxismo), devêssemos, como sugerem o filósofo e o psicanalista, pensar em uma única maquinaria constituída pelo cinismo e pela piedade – ou seja, ao invés de uma economia política, uma economia do desejo. O cinismo se assemelharia ao mecanismo da ideologia, que busca naturalizar a exploração da força de trabalho, ao passo que, nesse contexto, quando as distorções nessa relação fogem do controle, adotam-se medidas de piedade. Não seria a aceitação da Folha às cotas sociais?
Diante dos sintomas produzidos do sobretrabalho (mais-valia), buscam-se medidas para amenizar as distorções. No âmbito do Estado, essa lógica aplica-se facilmente, mas o que faz um veículo de comunicação se colocar tão veemente no lugar de quarto poder e de que o jornalismo é o guardião do povo – desses dois mitos inventados no século 19? O discurso da Folha de aceitação das cotas sociais não seria uma forma de inclusão prevista em seus próprios cálculos de reversão do excluído em capital (descolamento de recurso público para o privado), mas cujo discurso busca capturar esse outro pelo desejo?
Não há dúvida de que interessa ao mercado os programas sociais do governo federal, já que é a forma mais legítima de repasse de verbas públicas para a iniciativa privada, como no caso de bolsas de estudos para estudantes em universidades privadas. O entrave político para a Folha não diria mais respeito à “moral burguesa”, preconizada na falsa igualdade universal, na qual seria um erro criar prioridades no interior das distorções de ordem social.
Justiça inquestionável
Foi dos estoicos a tese de que o vazio não é parte do mundo, mas que associado comporá o “tudo”. O vazio é o que pode ser ocupado por um ser. Em uma versão bergsoniana é o tempo puro, o que não tem extensão (ou existência), ao contrário do tempo linear, cujo presente contínuo dá-se na atualização do tempo nos existentes, de tal forma que não há existência passada, mas sim um passado presente. O tempo puro assemelhar-se-ia ao núcleo traumático de um sintoma, no qual os sentidos são constituídos desse retorno ao tempo puro (inconsciente) que nunca pode ser totalmente apreendido. Esse retorno do fora (fora da consciência) não seria justamente o que causa o movimento contínuo de reparar os sentidos?
No âmbito da literatura, temos Franz Kafka, com seus personagens inadequados aos modelos estabelecidos no mundo. Josef K. é processado sem ao menos saber por quê (O processo); o camponês passa a vida inteira tentando entrar pela porta da lei sem saber que ela existe exclusivamente para ele (Diante da lei); ou o condenado que será torturado por uma maquinaria que escreverá, sobre seu corpo, sua sentença, de tal modo que a escrita que se forma na carne perfurada possa decifrar a culta desconhecida (Na colônia penal). De onde vêm esse estranho que permite a Kafka construir uma nova corporeidade, ou seja, uma nova existência à própria literatura?
A Cult (nº 194) de setembro dedica um dossiê a Franz Kafka. Ao folhear as páginas da revista, o leitor depara com a campanha da Folha. Os efeitos a partir desse plano de expressão (a campanha nesse contexto) são da ordem dos acontecimentos. Assim, Kafka e a campanha contra as cotas raciais são unidos, em uma condensação discursiva. Se a revista convoca o leitor a pensar na literatura como “experimentação política e filosófica”, nada mais apropriado do que elaborar uma análise da peça publicitária por caminhos subjetivos, a despeito das repartições lógicas que separaram os discursos em gêneros.
Dizer que a posição assumida pela Folha é contrária às cotas raciais não é um fato novo. Não há novidade. No editorial da Folha de 26 de abril de 2012, com o título “Cotas raciais, um erro”, o grupo critica a ação afirmativa após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, por unanimidade, considerou constitucionais as políticas de cotas raciais em universidades.O excepcional, agora, não é a posição da Folha, mas o contexto. Estamos em período eleitoral. A função é cirúrgica, como os dedos da maquinaria kafkiana. Daí, poderíamos construir uma crítica já consolidada sobre a posição partidária dos veículos de comunicação. Contudo, o desafio assumido aqui é outro: o de construir uma crítica inspirada, não só, mas, sobretudo, nos estoicos ao estilo deleuze-guattariano e em um ritornelo kafkiano, no compasso do dossiê dedicado ao escritor.
Voltemos as pontas, acopladas a uma maca onde o condenado deitaria para receber a sentença, que ele mesmo desconhecia, era também uma cirurgia na sua alma, como se o erro contaminando o corpo precisasse, agora, ser cauterizado. Em uma leitura do velho marxismo, essa maquinaria disciplinar não seria a busca por cauterizar a fissura do universal que omite o particular? Se o Estado moderno é fundado nos direitos universais (a igualdade burguesa), não seria um erro as medidas particulares? Esse falso universal funciona como um processo para ocultar uma relação que não é natural, mas sim, puramente, social.
Assim, a maquinaria disciplinar – a campanha seria uma expressão de um processo disciplinar dos sentidos – é uma forma de correção para deixar os sujeitos moldados a uma ideia de justiça inquestionável, como os falsos universais.
Os fantasmas da Folha
É preciso suspender o tempo linear que aponta para o futuro para deixar ser afetado pelo tempo puro. Em outras palavras, há sempre algo que não pode ser recalcado pelos representantes (com os falsos universais) do mundo das Ideias, que teria a função de ordenar os existentes – isso que em Platão é chamado de sensível. Ora, quando a Folha repete de forma exaustiva sua posição em matérias, editoriais, por meio de colunistas etc. e chega ao ponto de fazer uma campanha publicitária análoga a uma propaganda política (no mínimo crente de que é o quarto poder), não estaria retornando sempre ao mesmo ponto, o de tentar conter algo a mais, que escapa ao processo de controle dos sentidos e por isso o movimento de reprimir as diferenças? Sigo as pistas de Deleuze na sua apropriação dos estoicos, para quem há sempre algo a mais que as Ideias (que na visão platônica o mundo sensível deveria copiar os modelos ideais) não conseguem conter. Esse a mais são os incorporais.
Conter algo a mais não se refere a uma política contrária, nesse caso, a de defesa das cotas raciais. Esse seria o sentido explícito, para usar uma expressão de Roland Barthes. Ao contrário, os incorporais causam efeitos nas fissuras e cujo efeito retornam sempre, no limite da linguagem, no limite dos corpos sem se tornarem um corpo. No lacanês, seria semelhante ao Real que pode ser resumido como aquilo que resiste à simbolização, ao mesmo tempo em que é a causa do deslizamento de sentidos entre significantes.
Quando a Folha defende as cotas sociais não estaria se adequando ao “espírito do nosso tempo”, em um gesto de piedade que integra o cinismo? É um movimento que nunca cessará, já que é a busca para tamponar uma fissura que caracteriza o próprio capitalismo. Assim, percebemos a repetição do mesmo discurso em diferentes formatos e gêneros produzidos pela Folha. Mas só há esse movimento de repetir para conter, disciplinar, controlar os sentidos porque há sempre algo a mais que também retorna, mas agora como as cópias fantasma, os simulacros rejeitados por Platão porque dão formas a ideais novas totalmente autônomas em relação aos modelos “bons” que devem ser copiados (diferente em Deleuze, em que os simulacros ganham potência).
Para ser mais explícito, o poder exercido pelos meios de comunicação está cada vez mais fragilizado, difícil de se sustentar no mito de guardião do povo. É verdade que, no outro lado, a própria noção de que os políticos são os representantes do povo está também cada vez mais frágil. O que escapa às formas de representação afeta os corpos, gerando acontecimentos singulares, que são justamente causa dos incorporais.
O cinismo da Folha
A proposta aqui é simples, trabalhar com os incorporais, no qual Jankélévitch, a quem Émile Bréhier cita em sua obra As teorias dos incorporais no estoicismo antigo, publicado pela Autêntica, denomina de “quase-nadas”.
Na peça publicitária da Folha, publicada na Cult, contrária às cotas raciais é, ao mesmo tempo, favorável às cotas sociais. A diferença não é de retórica. Poderíamos até dizer que, no fundo, contrariando a posição conservadora e liberal que a Folha historicamente adota, agora assemelha-se a uma leitura de divisão de classe, como se o grupo comungasse com o marxismo. Ora, se a defesa é para as cotas sociais não seria ai um alinhamento de que todos os sintomas, as distorções sociais, são decorrentes da divisão de classe que faz da igualdade burguesa um falso universal? Ou seja, a classe perpassa por todas as outras identidades, como a de raça, a de gênero, a de credo etc. Em poucas palavras, as relações de poder que se estabelecem nos dois blocos políticos (insiro aqui a grande mídia constituindo um dos dois blocos) que compõem o principal espectro do nosso cenário não estaria marcada pela mesma diferença que separariam os marxistas dos intelectuais adeptos aos estudos culturais?
Precisamos assumir um movimento esquizoanalítico que nos ajuda a perceber os modos de subjetivação na relação entre sujeitos, grupos, instituições e o mundo. Se houvesse uma clínica do social, seria justamente a de romper com as formas e os conteúdos que ordenam a vida. Sabemos que a leitura de mundo formulada a partir das condições matérias dadas coloca, de um lado, aqueles que detêm os modos de produção (classicamente chamados de burguesia) e, de outro, aqueles que vendem sua força de trabalho. Os sintomas identificados por Marx decorreriam dessa divisão em que a maioria estaria subordinada a uma minoria. Assim, a luta de classes seria um tema maior no qual todos os outros sintomas decorridos da diferença de raça, de etnia, de gênero etc. estariam implicados.
O argumento da Folha, ironicamente, estaria mais próximo de uma leitura marxista do que de uma perspectiva do multiculturalismo? É evidente que se trata de cinismo ao violarem de forma tão aberta seus princípios liberais e de direitos universais, que exclui as condições desiguais historicamente formadas pelo qual os sujeitos estão inseridos.
Política-polícia do controle dos sentidos
A Folha constitui um corpo, não na dicotomia corpo/mente, mas no sentido de que tudo o que existe, para os Estoicos, é corpo, diferente dos estranhos, dos incômodos, dos erros, a corrupção das ideias, daquilo que não forma um organismo, um existente. Esses “quase-nadas” retornam sempre. Por isso, tudo pode ser associado, sendo a causa dos incorporais que afetam os corpos – um corpo sem órgãos que desestrutura os corpos orgânicos, nesse caso, desestrutura a política-polícia (as duas palavras originam-se do mesmo termo, politeía, do grego).
Seja a favor ou contra as cotas raciais, o acontecimento é a causa estranha nos corpos orgânicos, cujo movimento da política-polícia – sou tentado a dizer que nesse binômio não há diferença da grande mídia com os partidos políticos – é sempre de reterritorializar o estranho, de fixar uma nova ordem e de extirpar a diferença, ou seja, os simulacros que não estão submetidos a um modelo. É, por isso, que a grande mídia conservadora não conseguiu capitalizar para seu projeto a sucessão de protestos de junho de 2013. O que vimos desde o ano passado foi um movimento rizomático autônomo em relação aos modelos conhecidos de movimentos de massa. Talvez, Negri e Hardt tenham razão ao dizer que, ao invés de massa, devemos falar de multidão definida pela sua diferença irredutível. É como nas sucessões de cartazes que se podiam ver na multidão que ocupava as principais ruas das grandes cidades, os temas eram tão variados quanto o número de cartazes, de tal maneira que não havia bandeira unificada ou modelo ideal a seguir.
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José Isaías Venera é jornalista, professor universitário, doutorando em Ciências da Linguagem e com formação em psicanálise