Nem só de política e de economia vive o homem. Há assuntos – como o preconceito, ódio racial, machismo, eutanásia, ortotanásia, morte – que poderiam estar mais presentes na imprensa. Refletir sobre esses temas e esclarecer os leitores seria uma bela forma de os jornais ganharem espaço na disputa diária que hoje é travada entre imprensa escrita, rádio, TV e a internet. São temas considerados desagradáveis. Não é confortável para o profissional entrar nesses perigosos labirintos. Mas, eventualmente, é necessário.
No domingo (9/11), o caderno “Aliás”, do Estado de S.Paulo, dedicou duas páginas ao suicídio assistido da jovem norte-americana Brittany Maynard, de 29 anos, que sofria de um câncer incurável. A jornalista Lúcia Guimarães discutiu o assunto em entrevista com o bioeticista americano Arthur Caplan, diretor da divisão de Ética Médica do Langone Medical Center da Universidade de Nova York. Diz ele:
“Acredito que foi uma decisão ética porque ela sabia o que queria, era adulta, capaz e preferiu não se submeter ao tratamento paliativo do estágio avançado da doença. Não queria perder o controle sobre seu corpo e mente. Acredito que não tenha sofrido pressão, fazendo uma escolha sobre a qual refletiu.”
Para Caplan, a lei do suicídio assistido – em vigor no estado americano do Oregon – é um sucesso porque “menos de 1 em 500 pessoas com doenças terminais solicita as pílulas e, entre as que pedem, um terço decide não tomar os barbitúricos”.
Vinte pílulas…
O processo para conseguir as drogas é tudo menos fácil, como explicou o Caplan:
“O paciente tem que apresentar diagnóstico de doença incurável fornecido por dois médicos e um certificado de sanidade mental dado por psicólogo ou psiquiatra. Além disso, é preciso solicitar as pílulas três vezes, em intervalos de um mês. Em seguida, o paciente tem que decidir ingerir as pílulas por conta própria. Se outra pessoa ajudar, é homicídio. O paciente tem que informar a polícia e o departamento de saúde pública local.”
Segundo o médico, a prática de apressar a morte de doentes terminais vem de muito tempo:
“Há 25 anos, fizemos uma pesquisa anônima entre enfermeiros num certo complexo hospitalar e 15% responderam que sim, tinham atendido a pedidos de pacientes que queriam morrer mais rápido. Não há dúvida de que acontece, sou testemunha. O paciente está desesperado de dor e o médico aumenta a dose do tratamento paliativo, sabendo que há o risco de morte. Com exceção de um caso na Califórnia, há mais de 20 anos, não acredito que nenhum médico ou enfermeiro tenha sido processado por isso.”
Ele diz também que obter esse tipo de assistência é mais fácil para os ricos, que têm longos relacionamentos com médico particulares:
“Os pobres são atendidos por pessoas diferentes em centros de saúde ou emergências. Uma conversa típica que conheço é: ‘Sra. Smith, não deve tomar mais que 20 destas pílulas, 20, compreendeu?’. E a sra. Smith vai obtendo mais receitas e guardando as pílulas. É uma espécie de conluio, mas não vejo acontecer entre os pobres ou entre quem não tenha um vínculo forte com seu médico. É preciso o médico confiar no paciente, saber que ele vai fazer a escolha no momento certo, esteja mentalmente são e não vá passar as drogas para uma terceira pessoa. Então, sim, quando o suicídio assistido é ilegal, se torna um privilégio para os afluentes.”
Tema difícil
E no Brasil, como é a situação? O tema é discutido, na mesma edição do “Aliás”, no artigo “Entre o crime a compaixão”, de Ana Cristina de Sá e Flavio Cesar de Sá, especialistas em bioética:
“Suicídio assistido e eutanásia (voluntária ou não) são crimes em nosso país e não há sinais de que isso vá mudar tão cedo. (…) A ortotanásia já foi objeto de uma resolução do Conselho Federal de Medicina em 2006, que afirma ser ‘permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal’, sendo, portanto, considerada atitude correta e ética. (…) A prática em saúde no Brasil privilegia a beneficência e é ainda um tanto quanto paternalista, ou seja, os profissionais fazem pelos pacientes aquilo que considerem melhor, sem levar em conta o que o paciente ou sua família pensem sobre o tratamento e final de vida. No Hemisfério Norte, predomina o respeito à autonomia dos pacientes como eixo condutor da prática, inclusive nos assuntos relacionados à forma de morrer. Mesmo assim, é de se observar que são poucos os países em que o suicídio assistido é permitido. Nos Estados Unidos ele é permitido legalmente em apenas 5 estados, dos 50 que compõe a federação.”
O espaço dedicado pelo Estadão ao assunto é um bom começo para esse debate que promete se estender por muitos anos. Pode não ser uma solução, mas pelo menos é um começo. Em vez de tratar o assunto como mais uma fofoca internacional, o jornal discutiu, séria e profundamente, um tema que diz respeito a todos nós. Sem sensacionalismo, levou seus leitores a refletir sobre um tema indigesto, mas necessário.
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Ligia Martins de Almeida é jornalista