Qual a posição de um jornalista diante dos fatos que passam e repassam por seus olhos? Calar, fingir suspeita neutralidade – que, afinal, redunda em omissão – ou se posicionar, dizer e escrever o que pensa, mesmo correndo riscos? Fico com a terceira hipótese, a de instigar, criar polêmica, provocar o debate. Sobretudo quando os fatos envolvem a relação desigual entre o mais forte e o mais fraco, naquilo que os sociólogos definem como sociedade civil organizada, que se organizada mesmo fosse iria para as ruas – ou a elas voltaria, como fez em junho de 2013 – exigindo as mudanças que os governantes não souberam ou tiveram coragem de promover.
As circunstâncias e os fatos que envolvem a execução sumária de dez pessoas – a maioria, se não todas, inocentes que pagaram com a vida o preço de estar na hora errada e no local errado – por homens com sangue nos olhos, encapuzados e previamente arregimentados para cumprir uma missão macabra, de justiçamento pela morte de um cabo da Rotam, exige de qualquer cidadão, e não apenas do jornalista, um posicionamento firme e dura cobrança para que os responsáveis sejam punidos.
O que ocorreu na noite de terça-feira e madrugada de quarta, dias 4 e 5/11, era algo que podia estourar a qualquer momento em Belém, uma cidade dominada por justiceiros que promovem a justiça com as próprias mãos na medida exata e inadiável de seus interesses contrariados. O viciado em drogas, jovem, pobre, negro, branco ou pardo, desempregado e desamparado de qualquer política governamental séria que não seja o assistencialismo barato de véspera de eleições, paga com a vida o calote no traficante.
Se é “avião” do tráfico e fica com parte do dinheiro, também morre. Não há saída para ele. É caçado implacavelmente e morto. Esse crime, como outros milhares do gênero, sequer é investigado pela polícia. Vai para o arquivo frio da estatística, debitado no “acerto de contas”. Uma violação escancarada dos direitos humanos e das regras que balizam a atividade policial, pois a notificação de um crime e sua investigação são deveres dos agentes da lei.
Na outra ponta, temos também policiais civis e militares que se alimentam da corrupção e do achaque contra traficantes e viciados. É a máquina que movimenta milhares de reais, no mercado paralelo de intimidações e cujas ocorrências, por óbvios temores, raramente chegam aos registros das delegacias e quartéis, a não ser quando vítimas exauridas nas suas possibilidades financeiras procuram as corregedorias no último esforço para fugir do assédio.
Ética e moral
Uma providência que, às vezes, pode lhes custar a própria vida. As polícias civil e militar registram número cada vez maior de agentes demitidos a bem do serviço público, seja pela prática de corrupção ou violência física contra civis, mas tais providências, às vezes tardias, pouco servem para inibir novas aventuras criminosas. A revisão dos critérios de seleção de policiais, com maior rigor nas avaliações psicológicas, seria uma das alternativas para a qualidade das admissões.
Em meio a tudo isso, reina na sociedade o sentimento de insegurança dos que trabalham e produzem para sustentar suas famílias ou a si próprios, pagando impostos elevados, taxas disso e daquilo, num ambiente social onde o deus-mercado determina quem existe como contribuinte ou apenas vegeta no caldeirão do consumo voraz. O país está cada vez mais violento e o Pará não poderia ser exceção, é verdade. Falta, porém, uma ação mais efetiva do governo estadual para combater os números abusivos de assaltos, roubos e homicídios.
Não dá para brigar contra os fatos, apesar de frequentemente, no calor das disputas políticas, o governo minimizar os números da violência ou tentar justificá-la sob o argumento pouco convincente de que ela reflete uma tendência nacional, enquanto a oposição coloca Belém, ora entre as dez cidades mais violentas do mundo, ora esticando a estatística até o 23° lugar. De qualquer maneira, números altíssimos capazes de envergonhar qualquer governo.
O papel do jornalista é mostrar o que acontece, doa a quem doer. Ele não deve se deixar contaminar por colegas de profissão – aliás, na profissão errada – que entendem que repórter é apenas para escrever o que chega ao seu conhecimento, ouvindo o outro lado, sem manifestar nenhum tipo de opinião. Que coisa mais reacionária, inodora e sem gosto. Essa postura conformista, acovardada, é indigna de um verdadeiro jornalista.
Vejo parte desse comportamento em alguns colegas que exercem assessoria de imprensa em órgão público, como se o fato de ser pago por governante de plantão levasse alguém a ser grato por mantê-lo no emprego. Daí, limita-se apenas a escrever o que algum secretário de governo determina, em muitos casos submetendo o texto a quem nada entende de jornalismo e nem de respeito ao profissional, mas que exerce o comando por alguma conveniência política ou partidária. Isso é intolerável e exige repreensão do jornalista ao secretário que lhe dá ordens, mesmo sujeitando-se à demissão.
Em algumas situações da vida profissional é preferível cair para cima, saindo com a dignidade em alta e a cabeça erguida, a sujeitar-se à humilhação de algum velhaco detentor de cargo público de chefia e que pode, lá na frente, ser varrido como lixo, na mudança de governo, substituído por outro autoritário imbuído daquele espírito de mudança típico de quem chega para nada mudar.
O jornalista não é, nunca foi, nem jamais será melhor do que qualquer outro profissional. Digo que sua profissão é apenas diferente da maioria, mas regida pelas mesmas regras de conduta ética e moral. E segui-las está no íntimo de cada um. Com a bonança e a tempestade que isso é capaz de provocar.
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Carlos Mendes é correspondente em Belém de O Estado de S. Paulo e repórter especial do Diário do Pará