Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Novas leis contra a oposição a Putin

Aparentemente, não se trata de especulação imobiliária, nem de uma necessidade premente da Prefeitura de Moscou por espaço. Mas o pequeno Teatr.doc, que ocupa a espremida sala negra com ares de calabouço no centro da capital russa, a poucos passos da emblemática Praça Pushkin, está prestes a ser despejado. Criada nos idos de 2002, a companhia se notabilizou pela irreverência, audácia e a capacidade de inovar no palco com encenações de forte conteúdo crítico e político. Dali surgiram nomes importantes da cena teatral contemporânea, como a dramaturga Elena Gremina, um das suas cofundadoras. Em Oxford, onde participou de encontro “De volta à União Soviética?” para debater o teatro russo, ela disse que não há motivos claros para a decisão, mas confessa ter se surpreendido com o apoio que tem recebido nas redes sociais.

– Não sei o que vai acontecer. Outros teatros chegaram a nos oferecer espaço. Não queremos criar problemas para ninguém. A situação política para os teatros mudou. Depois das leis que baniram os palavrões e a propaganda homossexual, por exemplo, vários textos foram adaptados. Os gays são apresentados como anti-heróis ou personagens cômicos. Só podem ser mostrados em situações negativas – disse a autora da aclamada peça “Irmãos Ch”, sobre a família do escritor Anton Tchekov, levada ao cinema pelo diretor Mikhal Ugarov, também cofundador do Teatr.doc e seu marido.

O que está ocorrendo com o Teatr.doc não tem uma explicação clara, como muito do que acontece na Rússia do presidente Vladimir Putin. E tampouco é um caso isolado. A rádio Ekho Moskvy, conhecida pelas suas posições críticas, também sofre a ameaça de sair de ar. Seu destino pode ser decidido nos próximos dias. A Memorial, organização não-governamental voltada para os direitos humanos – uma das primeiras a atuar neste segmento no país, criada no período da perestroika inicialmente com o objetivo de dar assistência aos prisioneiros políticos vítimas do regime soviético –, está sendo julgada neste momento e pode ter de fechar as portas.

O fim destas duas últimas instituições, de acordo com especialistas, não significa necessariamente que será sentido pelas massas. Estima-se que um em cada dez russos nunca ouviu falar na Memorial, e que, sobre a Ekho Moskvy, só sabem da verve crítica contra o regime vigente. No entanto, os sinais parecem evidentes.

Em princípio, segundo a própria Elena alardeou na sua página no Facebook, a suspensão do contrato de aluguel do imóvel teria se dado sem aviso prévio ao teatro e sem motivo evidente, embora o departamento responsável continuasse recebendo os pagamentos mensais. Ninguém sabe o que há por trás da determinação, nem se veio ainda mais de cima, do gabinete do prefeito de Moscou, ou ainda de instâncias superiores a ele. Boa parte do repertório da companhia se dedica a um gênero conhecido como teatro documentário. Um dos novos projetos em desenvolvimento, segundo adiantou a escritora, é uma peça baseada em relatos dos prisioneiros feitos durante os protestos na Rússia, esquecidos na cadeia. O Teatr.doc espera uma resolução final. Caso contrário, mês que vem terá de deixar o endereço atual.

Para o diretor do Instituto de Rússia da Universidade King’s College, Sam Greene, que acaba de lançar o livro “Moscow in movement: power and opposition in Putin’s Russia” (Moscou em movimento: poder e oposição na Rússia de Putin, em tradução livre), o país está claramente se fechando desde os protestos que levaram milhares de pessoas às ruas a partir de 2011.

– As coisas mudaram de maneira dramática desde 2009. Naquela época, enquanto o governo tinha muito interesse em aumentar os controles, o Kremlin sentia que tinha uma posição inconteste e inquestionável na política russa. Os protestos de 2011-2012, junto com as turbulências econômicas crescentes, mudaram o cenário, e Putin e sua equipe se puseram em uma competição “nós contra eles” com uma oposição engajada – explica Greene, que viveu na Rússia.

Interferência externa

Para marginalizar a oposição, segundo o professor, Putin voltou-se à ideologia para reforçar as rédeas sobre a elite e passou a impor uma hierarquia de poder ainda mais estrita. O resultado se traduziu em um aumento da pressão social e política sobre qualquer um que esteja fora da linha oficial, assim como mais pressão sobre os oficiais de governo em todos os níveis para que façam respeitar esta linha nas suas jurisdições.

– Por isso, embora seja difícil saber se foi o próprio Kremlin que mandou funcionários atrás do teatro, da rádio, da ONG ou de qualquer outro grupo ou mídia, a realidade é que o sistema por si só está criando incentivos e pressões que tornarão cada vez mais difícil a sobrevivência de qualquer organização verdadeiramente independente – disse.

A internet também tem sido alvo constante das autoridades russas. Desde agosto, todos os blogueiros com mais de 3 mil leitores diários estão obrigados a se registrar junto ao órgão regulador da mídia, o Roskomnadzor, e se adaptar à legislação em vigor para os grandes meios. De acordo com a lei, os blogueiros já não podem mais se manter no anonimato. A novidade também obriga que as empresas de internet permitam às autoridades russas, quando necessário, acesso a informações de usuários. Estas últimas, em princípio, devem ser mantidas na base de dados das empresas por pelo menos seis meses. Tudo isso significa que pode ficar fácil fechar sites e ir atrás dos seus proprietários.

Até bem pouco tempo atrás, a internet era tida como o espaço mais livre da sociedade russa contemporânea para os críticos do sistema. Debates sobre política e denúncias importantes tiveram lugar na rede nos últimos anos, assim como as convocações para os protestos que tanto assustaram o Kremlin recentemente. Ainda não se sabe como a nova lei será aplicada, mas os interessados já estariam buscando meios para driblá-la.

Uma outra lei aprovada no início do ano já dava ao governo poderes para bloquear páginas na internet sem maiores explicações. Foi assim que o blog do oposicionista Alexei Navalny, o blogueiro que emergiu dos protestos anti-Putin, e outros dois sites de uma organização encabeçada pelo também oposicionista, ex-enxadrista e ex-candidato à Presidência da Rússia Gary Kasparov foram bloqueados.

Esta semana, em uma reunião de seu Conselho de Segurança sobre o combate ao extremismo, Putin afirmou que a Rússia deve evitar uma “revolução colorida”, em referência a revoluções populares que ocorreram nas ex-repúblicas soviéticas, notadamente a “revolução laranja” na Ucrânia.

– No mundo moderno, o extremismo é usado como um instrumento geopolítico para redefinir esferas de influência. O que vemos são consequências trágicas dessa onda revolucionária – afirmou o presidente. – Para nós isso é uma lição e um alerta. Temos que fazer o possível para que nada semelhante aconteça na Rússia.

Putin também manifestou preocupação com interferência externa. No início da semana havia acusado os EUA de tentarem subjugar a Rússia, culpando o Ocidente pela derrubada de um presidente ucraniano apoiado por Moscou em fevereiro, e acusando Washington de incentivar protestos contra seu governo no inverno de 2011.

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Vivian Oswald é correspondente do Globo em Londres