“Quem é essa mulher. Que canta sempre esse estribilho? Só queria embalar meu filho. Que mora na escuridão do mar. Quem é essa mulher que canta sempre este lamento. Queria lembrar o tormento, que fez o meu filho suspirar”. É improvável que a jornalista Hildegard Angel consiga descobrir onde estão os restos de seu irmão, Stuart Angel Jones, dirigente do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), preso em maio de 1971, torturado, morto e desaparecido. Ele tinha 25 anos de idade. A busca desesperada e incansável da mãe deles, a estilista Zuleika Angel Jones, conhecida como Zuzu Angel, marcou para sempre a vida de Hildegard. Zuzu perambulava por gabinetes, enviava cartas, chegou a pedir ajuda ao então secretário de Estado americano Henry Kissinger. Sua dor comoveu, entre muitos outros, o cantor e compositor Chico Buarque. Ele e Miltinho, do MPB-4, são os autores da canção “Angélica”. A história de uma mulher cujo único desejo era saber onde estava seu filho ou o corpo do menino que ela queria embalar.
No dia 10 de dezembro, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregará à presidente Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto, o relatório com as conclusões dos dois anos e meio de trabalho. Pela primeira vez na história das investigações que apuraram os crimes cometidos durante a ditadura militar, o documento recomendará que seja responsabilizada toda a cadeia de comando das Forças Armadas, desde o golpe de 1964. Entre os responsáveis vão figurar todos os presidentes do regime (de Castello Branco, o primeiro, a João Baptista Figueiredo, o último) e seus ministros ligados aos aparatos de segurança, como o Serviço Nacional de Informações (SNI). “Os ex-presidentes já morreram, mas isso não impede a responsabilização”, assim como a de muitos outros, “a exemplo dos generais da reserva, ambos ex-comandantes do DOI-Codi do Rio de Janeiro, Leonidas Pires Gonçalves e José Antônio Nogueira Belham”, relata o coordenador da CNV, Pedro Dallari (leia entrevista).
Nas últimas semanas, a CNV concentrou a maior parte do tempo à discussão do que fazer com a Lei da Anistia, que perdoou os crimes da ditadura e também as ações armadas dos opositores. Por cinco dos seis votos (o único contrário foi de José Paulo Cavalcanti), decidiu-se que será recomendada também a responsabilização criminal, civil e administrativa de todos os agentes envolvidos nos crimes. A responsabilização só poderá ocorrer se a Lei da Anistia for revista. Mas não cabe à CNV fazer esse tipo de recomendação. “Faremos o relato, identificaremos os responsáveis e caberá, então, ao Ministério Público, à Justiça ou mesmo ao Legislativo decidir o que será feito”, explica Dallari.
Há quase dois anos e meio, a CNV foi instalada pela presidente Dilma Rousseff com base na lei 12.528/2011, e instituída em 16 de maio de 2012. A CNV tem por finalidade apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Para tanto, ouviu centenas de depoimentos, analisou um sem fim de documentos e confrontou versões.
Muita coisa ainda não foi esclarecida, mas, para Hildegard Angel, o trabalho da CNV e o desdobramento das investigações, por meio da Comissão Estadual da Verdade [do Rio de Janeiro] já ajudaram a esclarecer o que houve com seu irmão, Stuart, e com sua mãe, Zuzu. Stuart teria sido preso, torturado e morto nas dependências do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) em 14 de junho de 1971. Mesmo fim teve sua mulher, a também militante e guerrilheira Sônia Morais Jones, morta dois anos depois e igualmente dada como desaparecida. O acidente de carro em que Zuzu morreu também teria sido provocado por agentes da repressão. “As pessoas que cometeram esses crimes devem ser responsabilizadas. Não podemos justificar essas atrocidades. Precisamos saber onde estão esses assassinos. Preciso saber onde está o corpo do meu irmão”, diz Hildegard, com a voz embargada. Durante muitos anos, a versão existente era de que o corpo de Stuart Jones teria sido lançado ao mar. Agora, também em depoimentos à Comissão, existe uma nova pista: a de que seus restos estariam na cabeceira da pista da Base Aérea de Santa Cruz, na zona Oeste do Rio.
Versões falaciosas
Em palestra proferida há poucos dias (“Golpe de 64 e seus reflexos”), em uma conferência de advogados, Dallari avaliou como positivos os dois anos de investigações. Citou como exemplo o sucesso das sete diligências realizadas nas bases militares listadas no relatório preliminar da CNV sobre tortura em instalações das Forças Armadas, publicado em fevereiro deste ano. Destacou a última, realizada no dia 21, na base naval de Ilha das Flores, em São Gonçalo (RJ).
Diante das recusas das Forças Armadas de entregar documentos do período da ditadura que poderiam esclarecer casos de tortura, desaparecimentos e mortes, a CNV adotou, por sugestão de Dallari, a tática de vistoriar as instalações militares. As visitas quase sempre eram acompanhadas por ex-militantes da esquerda que haviam sido presos, torturados ou mesmo presenciado abusos cometidos contra companheiros. “Essa visita à base naval foi terrível”, recordou Paulo Sérgio Pinheiro, integrante da CNV, em entrevista ao Valor, no mês passado. Nessa ocasião, dez ex-presos políticos e um ex-soldado do corpo de fuzileiros navais identificam as casas – já abandonadas e bastante deterioradas – onde ocorriam as torturas.
As visitas quase sempre seguiram o mesmo roteiro. Os integrantes da CNV chegavam ao local, eram recebidos pelos oficiais comandantes e iniciavam o trabalho. “São momentos de constrangimento extremo. Estão ali vítimas do regime, descrevendo atos de violência para jovens que não foram seus algozes. Muitos sequer haviam nascido nessa época. Mas estão ali, cumprindo ordens”, disse Pinheiro.
Apesar dos avanços, o coordenador da CNV afirmar que, para completar o pilar de memória, verdade e reconciliação, previsto na lei que criou a CNV, é necessário fazer que as Forças Armadas reconheçam as graves violações de direitos humanos e a utilização de quartéis e instalações militares como centros de tortura após o golpe de 1964.
O problema é que os militares não reconhecem a legitimidade da Comissão. Os da ativa, por causa da hierarquia, sequer podem tocar no assunto publicamente. “Tudo isso é um constrangimento para nós, que somos de uma nova geração. Devemos respeito aos nossos antecessores, ainda que, em alguns momentos, acabemos sendo criticados por atos que não conhecemos. Éramos crianças ou sequer tínhamos nascido”, observa um oficial do Exército. Filhos desses militares que seguem a carreira dos pais e estudam na Academia Militar das Agulhas Negras, sofrem com o mesmo dilema: o respeito a uma geração já há muito afastada dos quartéis, mesmo discordando dela.
As Forças Armadas veem a Comissão com desconfiança e mesmo rancor, desde que foi instaurada, em 2012, durante cerimônia que lotou o salão principal do Palácio do Planalto, à qual compareceram quatro ex-presidentes que antecederam Dilma desde a queda do regime militar – Fernando Collor, José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, a presidente Dilma Rousseff, ela mesma presa e torturada como integrante da organização clandestina VAR-Palmares, fez um discurso que levou às lágrimas muitos dos presentes e ela própria. “A ignorância sobre a história não pacifica. Pelo contrário, mantém latentes mágoas e rancores. A desinformação não ajuda a apaziguar. O Brasil merece a verdade, as novas gerações merecem a verdade, merecem a verdade factual também aqueles que perderam amigos e parentes. O Brasil não pode se furtar a conhecer a totalidade de sua história”, disse Dilma.
Também presentes ao ato, os três comandantes militares, brigadeiro Juniti Saito (Aeronáutica), general Enzo Peri (Exército) e almirante Julio Soares de Moura Neto (Marinha) desde então trataram os membros da CNV no limite da polidez. Entretanto, não atenderam aos pedidos para que pudessem examinar documentos da ditadura. Alegaram sempre que eles não existem mais. Foram destruídos, queimados ou simplesmente desapareceram. Ao mesmo tempo, baixaram uma ordem de silêncio que inclui negar todos os pedidos de entrevista sobre o assunto.
Por um tempo, oficiais da reserva estavam liberados para emitir opiniões. Depois da divulgação de um documento do Ministério da Defesa que supostamente admitiria a possibilidade de as Forças Armadas se desculparem pelos excessos cometidos, também esses militares foram calados. A última manifestação feita por generais de quatro estrelas negava o pedido de desculpas e dava o assunto por encerrado. Ainda assim, alguns oficiais, em conversas informais, deixam clara sua posição.
“O grande problema desse trabalho é que começa com uma grande mentira”, afirmou ao Valor um general da reserva. “Tenta reescrever a história a partir de uma luta entre o bem e o mal que não existe, nunca existiu. Essa comissão em nenhum momento teve o objetivo de esclarecer o que se passou. Não é um trabalho honesto. Todos sabemos que a guerrilha não lutava pela redemocratização do país. Lutava para fazer do Brasil um modelo comunista, como o de Cuba. Houve excessos? Houve, sim. De ambos os lados. Até por que, no lado das Forças Armadas, as investigações eram muito descentralizadas. Em alguns momentos, 200 mandados de interrogatórios eram expedidos. Como controlar isso?” Disse ainda: “O que nos assusta é que a Lei da Anistia foi uma lei de conciliação. Se começarmos a mexer nessa conciliação, vamos caminhar para uma crise e enfrentamento com as Forças Armadas.”
Talvez não seja preciso chegar a uma crise para sanar as lacunas do passado recente. Países do Cone Sul submetidos a ditaduras nas últimas décadas do século passado vêm cicatrizando suas feridas. “O pacto entre elites e militares no poder que sustentou as ditaduras se dissolveu de formas diferentes em cada um dos países do Cone Sul. De certo modo, isso nos ajuda a entender os motivos pelos quais algumas diferenças são perceptíveis, hoje, nos mecanismos utilizados em cada contexto para tratar a memória da repressão”, diz o cientista político da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Carlos Artur Gallo, que realizou pesquisa sobre o assunto. “Ao contrário do Brasil, onde uma Comissão da Verdade somente veio a ser constituída mais de 25 anos após o fim da ditadura, a Argentina, o Chile e o Uruguai assistiram aos trabalhos desses organismos pouco tempo após a transição para a democracia.”
Na Argentina, o saldo da repressão foi muito maior do que nos países vizinhos, e estima-se entre 10 e 30 mil o número de pessoas desaparecidas. No Chile, no Uruguai e no Brasil, o número de desaparecidos é menor. Aqui, as vítimas ficaram ao redor de 500. “Embora isso não seja motivo para que a democracia deixe de enfrentar o tema, é fato que a capacidade de mobilização em torno da questão é em alguma medida influenciada pela quantidade de pessoas que foram atingidas”, afirma Gallo.
Ainda que haja diferenças no que se relaciona ao modo como conduziram seus trabalhos, as comissões de investigação que funcionaram na Argentina, no Chile e no Uruguai “possibilitaram o reconhecimento público e oficial da existência da violência política, ajudaram a identificar os casos de mortes e desaparecimentos ocorridos em nome da doutrina de segurança nacional e estabeleceram pontos de partida para a elaboração de políticas públicas com vistas à reparação das famílias atingidas, mas, principalmente, de algum modo comprometidas com as demandas por memória, verdade e justiça”, diz o cientista.
Gallo observa que, a partir das investigações nesses países, foi possível obter avanços na elucidação dos crimes cometidos pela ditadura, levar repressores e ditadores para o banco dos réus e, ao trabalhar pública e coletivamente o tema, sedimentar as bases de uma cultura política na qual algo semelhante ao que se passou na vigência do autoritarismo não deverá se repetir.
Não se trata, afirma Gallo, de debater as diferenças entre crimes cometidos por agentes da repressão ou militantes de esquerda. O ponto central da discussão, em sua opinião, seria admitir que os possíveis crimes cometidos por militantes da luta armada “foram, em sua maioria, julgados por instituições a serviço do regime ditatorial, que, como foi amplamente noticiado na época, legitimavam o ideário anticomunista e reforçavam elementos de uma cultura do medo no Brasil. Assim, os crimes que até hoje não estão devidamente elucidados são as violações praticadas por agentes do Estado brasileiro que, a serviço de uma ideologia que considerava os próprios cidadãos inimigos públicos, torturaram, perseguiram, prenderam, julgaram, mataram e fizeram desaparecer centenas de pessoas. A Comissão Nacional da Verdade, portanto, tem o dever de completar a história do país, restabelecendo aspectos que durante décadas foram obscurecidos e/ou adulterados por versões oficiais elaboradas por agentes do aparato repressivo institucionalizado com o golpe de 1964”.
“Tanto para as vítimas, quanto para seus familiares, e para aqueles que estudam esse período da história do Brasil, a Comissão da Verdade não pode abrir mão de restabelecer aspectos que, por décadas, foram obscurecidos e adulterados por versões oficiais do aparato repressivo”, diz Gallo. “Ninguém consegue superar aquilo que não conhece, aquilo que não entende. Negar o passado ou impedir que se saiba o que aconteceu durante o período que vai de 1964 a 1985 colabora para que, coletivamente, a sociedade brasileira sinta os efeitos daquilo que, em psicologia, denomina-se ‘o passado que não passa’.”
Sem corpo
Superar esse passado, segundo a psicanalista e membro da Comissão da Verdade Maria Rita Kehl, implica obrigatoriamente dar fim a um trauma. “E quando esse trauma acaba? Ninguém pode saber. Quando acabará a dor de pais, mães, irmãos, avós que buscam notícias de seus entes queridos? Morreram, fugiram? Essa foi e é a suprema crueldade dos militares que participaram desse regime. Os militares dizem que manchamos a imagem deles com o trabalho da Comissão. A imagem já foi manchada há muito tempo. Os únicos que poderiam limpá-la seriam eles mesmos A política de Estado que permanece é a de não revelar o paradeiro dessas pessoas. É a de transferir para elas essa busca sem fim.”
No livro Você Vai Voltar para Mim e Outros Contos, Bernardo Kucinski conta uma história que talvez possa mostrar o que é “essa busca sem fim”. No conto chamado “O Velório”, Kucinski descreve com riqueza de detalhes um enterro. Tudo estava em seu lugar, como manda o protocolo dessas ocasiões. As velas, os ramos de flores, os familiares. Por fim, o caixão é levado à sepultura. Dentro não havia um corpo. Apenas uma roupa de Roberto, o filho de Antunes, desaparecido. Aos 90 anos, Antunes não queria morrer sem enterrar o filho cujo corpo nunca fora encontrado.
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“Todos serão obrigados a reparar o mal”
A menos de 15 dias de entregar o relatório com as conclusões finais dos dois anos de trabalho da Comissão da Verdade, o coordenador dos trabalhos, Pedro Dallari, fala nesta entrevista sobre alguns dos pontos que farão parte do documento. O mais importante deles será a recomendação de que sejam responsabilizados todos os que fizeram parte da cadeia de comando das Forças Armadas que permitiram torturas e assassinatos em instituições militares. Segundo Dallari, essa decisão atingirá desde ex-presidentes da República, do regime militar, a todos os subordinados. “Sem exceção, todos foram responsáveis, mesmo aqueles que não mancharam suas mãos com sangue.”
Quais vão ser os pontos principais do relatório da Comissão da Verdade que vocês estão concluindo?
Pedro Dallari – Embora muitos venham dizendo que vamos pedir isso ou aquilo, determinar isso ou aquilo, o mandato de nossa comissão não prevê nada disso. Então, o que nós fizemos? Apuramos os fatos com o máximo de precisão e ouvimos todos os envolvidos na medida do possível. Nosso mandato permite fazer recomendações.
O que a comissão vai recomendar?
P.D.– Vamos recomendar a responsabilização criminal, civil e administrativa de todas as pessoas que fizeram parte da cadeia que permitiu a tortura, o assassinato e o desaparecimento de cidadãos brasileiros.
Mas, ao recomendarem essa responsabilização, a proposta não bate de frente com a Lei da Anistia?
P.D.– Não. Nós não temos poder ou competência para pedir que a Lei da Anistia seja revista. Mas ela não pode ser um empecilho para que se faça justiça. Só que não nos cabe pedir isso. A recomendação deverá ser seguida, ou não, pelo Legislativo e pelo Judiciário.
Como será essa responsabilização?
P.D.– Essas pessoas que comprovadamente participaram dessa violência serão obrigadas a reparar o mal que fizeram. Nossa constatação, depois de ouvir tantos depoimentos, é que os graves atentados contra os direitos humanos não foram fruto da ação isolada de alguns psicopatas. Isso foi uma política de Estado. O Estado brasileiro optou pela prática da tortura, morte e ocultação de cadáveres.
E quem serão essas pessoas responsabilizadas? O senhor pode falar de algumas?
P.D.– Serão desde os presidentes da República, todos a partir do golpe militar, e seguiremos a cadeia de comando. Os presidentes já estão mortos. Mas seus chefes superiores estão vivos. Chefes do Serviço Nacional de Informações, como o general da reserva Leônidas Pires Gonçalves, ministros militares, todos serão responsabilizados. O general José Antônio Nogueira Belham, comandante do DOI-Codi na época da prisão e do assassinato do deputado Rubens Paiva. Há ainda Sebastião Curió, o coronel Carlos Brilhante Ustra e muitos outros.
O senhor está satisfeito com o trabalho da comissão?
P.D.– Estou sim. Mas tenho duas frustrações: uma delas é o fato da falta de reconhecimento das Forças Armadas sobre nosso trabalho. Não se trata de perdão ou desculpas, mas de admitir o que aconteceu. A outra é a de não termos conseguido avançar na localização dos corpos dos desaparecidos. Sabemos a dor profunda que as famílias dessas pessoas carregam.
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Monica Gugliano, para o Valor Econômico