O que têm em comum uma lei de propriedade intelectual americana, uma firma espanhola e a liberdade de expressão no Equador? Mais do que se poderia imaginar.
Ao longo do ano, vários equatorianos viram como desapareceram misteriosamente o conteúdo de seus próprios perfis no Facebook, canais de vídeo no YouTube ou contas de Twitter. Os conteúdos que se esvaíram tratam de uma ampla gama de temas. Contudo, têm apenas um elemento em comum: criticam, ridicularizam ou põem em evidência o governo equatoriano.
Por exemplo, em setembro, depois que a Polícia Nacional reprimiu violentamente manifestantes em Quito, o Facebook eliminou da conta pessoal de um cidadão equatoriano um link para um vídeo com imagens de abusos policiais supostamente cometidos durante os protestos. O vídeo continha imagens e gravações do presidente Rafael Correa, extraídas de seu programa semanal no canal público de TV, em que felicitava a polícia por sua atuação.
Em abril, a conta de Twitter de Diana Amores, uma tradutora que habitualmente compartilha tuítes de conteúdo humorístico com seus mais de quatro mil seguidores, foi suspensa, depois de em várias oportunidades o Twitter ter eliminado imagens que ela difundira, inclusive caricaturas. Amores havia postado uma imagem onde se viam os personagens de “Os Simpsons” deitados no chão e, em segundo plano, um televisor que transmitia o logotipo do programa semanal de Correa. A imagem era acompanhada por um tuíte no qual Amores aludia, em tom irônico, ao efeito nocivo do programa.
Em outubro de 2013, o cineasta Pocho Álvares advertiu que seu vídeo “Acoso a Íntag” – um documentário de nove minutos sobre a perseguição a uma comunidade indígena que resistia às atividades de mineração na sua área – tinha desaparecido de sua conta no YouTube. O vídeo continha menos de 20 segundos de imagens com a voz de Correa, durante os quais ele repetia a frase “Vejamos quem são os que estão causando esses problemas”, sugerindo que as comunidades locais seriam responsáveis por prejudicar o desenvolvimento da região.
Último espaço
Por trás desses e de outros casos há uma firma na Espanha que pediu ao Facebook, Twitter e YouTube que removessem os vídeos ou as imagens, alegando que violavam a legislação dos EUA sobre propriedade intelectual. Embora as autoridades equatorianas tenham se distanciado desses fatos, as solicitações para remoção dos conteúdos indicam que a empresa espanhola representava atores estatais equatorianos, incluídos o canal público de TV, o partido político governante e um ministério.
Como pode ocorrer algo assim? Em 1998, o Congresso dos EUA promulgou a Lei dos Direitos de Autor do Milênio Digital (DMCA) com o objetivo de combater as violações de direitos na internet. A lei outorga aos titulares um sistema rápido de “notificação e eliminação de conteúdo” que lhes permite solicitar a provedores de serviços on-line, como buscadores ou redes sociais, que eliminem conteúdos ou links, argumentando que violam direitos de propriedade intelectual, sem necessidade de uma ordem ou controle judicial. Desde que cumpram esses dispositivos, as companhias de internet estarão blindadas frente a qualquer alegação de responsabilidade legal pelo conteúdo que seus usuários publicarem.
Na prática, ante uma reclamação desse tipo, as companhias retiram de imediato o conteúdo impugnado. Mesmo assim, os usuários podem apelar, e o fazem, invocando o princípio do “uso justo” (fair use), uma exceção contemplada pelo direito americano que permite reproduzir materiais sujeitos a propriedade intelectual para determinados fins, como o comentário crítico, paródias, ensino e pesquisa. Nos casos em que equatorianos apelaram da remoção de conteúdos, estes em geral foram restabelecidos.
O presidente Correa elogiou o papel da Polícia Nacional, que empregou força excessiva e deteve arbitrariamente manifestantes opositores. Logo depois, adotou uma das leis de comunicação mais restritivas da região, recorreu a normas penais sobre difamação, iniciou ações milionárias contra críticos e liderou uma campanha internacional para desacreditar a Relatoria Especial da OEA para a liberdade de expressão, que questionara fortemente seu governo.
E agora, o governo encontrou uma nova ferramente para calar a liberdade de expressão no país. Num momento em que os jornais, as estações de rádio e os canais de TV equatorianos enfrentam cada vez mais dificuldades para difundir livremente informação crítica, os cidadãos recorrem à internet, o último espaço que lhes resta para obter, difundir e compartilhar informações e opiniões. Parece que, se dependesse das autoridades, nem a isto teriam direito.
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José Miguel Vivanco é diretor executivo para as Américas da Human Rights Watch. Eduardo Bertoni é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Palermo e ex-relator para liberdade de expressão da OEA