Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A liberdade de expressão está em risco?

Após o atentado em Paris, O GLOBO conversou com uma série de humoristas e intelectuais brasileiros. Eles deram suas opiniões sobre a situação que vive a liberdade de expressão.

JÔ SOARES“Combater fazendo humor’: Jô Soares diz que humor é uma forma livre e anarquista de expressão e que é fundamental preservar essa liberdade”

A liberdade de expressão sempre correu riscos, mas essa manifestação foi extremista, da mais absurda violência. O único jeito de combater é continuar fazendo humor.

O humor é uma forma totalmente livre e anarquista de expressão, e é fundamental preservar essa liberdade. Sem isso, é o começo da morte da liberdade de expressão, um reacionarismo muito forte. Episódios graves aconteceram nas ditaduras, na arte, na música, com o humor.

Manifestações de liberdade por vezes incomodam algumas pessoas, que por vezes também reagem com muita violência. O que aconteceu ontem foi que 12 pessoas morreram de uma forma estúpida em defesa da liberdade de expressão. Então, vemos como é perigoso quando uma forma de poder quer regularizar a liberdade expressão. [Humorista e apresentador em depoimento a Liv Brandão[

HÉLIO DE LA PEÑA“A tendência é resistir’: Comediante diz que é preciso colocar a irreverência na rua”

Esse atentado deu uma gravidade a essa discussão. A gente já vinha discutindo muito a questão do politicamente correto, uma questão com consequências bem mais sutis do que alguém ser assassinado dessa forma. Recentemente, tivemos o caso do filme “A entrevista”. A Sony sofreu consequências, e ficamos sem saber como ia ficar. Mas o caso de uma redação ser invadida por fanáticos terroristas que saem metralhando todos que estão trabalhando vai levar essa discussão para além dos profissionais. É um alerta para toda a sociedade, não só para quem trabalha com humor.

Não se pode ceder às ameaças. Temos todos que continuar botando a irreverência na rua, denunciando qualquer ameaça à liberdade de expressão.

No Brasil, estamos mais distantes dessa realidade do terrorismo. Agora, aqui em Paris, por exemplo, eles são muito corajosos. As revistas “Harakiri” e “Charlie Hebdo” sempre foram bem corajosas, não só com a questão dos muçulmanos, mas sempre falaram da Igreja católica, dos casos de pedofilia. Abordam qualquer tema. E, por isso, estão recebendo uma solidariedade bem grande da população. A tendência é resistir. [Humorista, que está em Paris, em depoimento a Liv Brandão]

FRÉDÉRIC MARTEL“Terror perdeu, mesmo matando’: Escritor diz que mesmo jornais que não tinham simpatia pelo ‘Charlie Hebdo’ demonstraram apoio”

A França é um país sólido. Foi obviamente muito abalado porque 12 pessoas foram mortas. Mas o “Charlie Hebdo” vai reaparecer, justamente para mostrar que a liberdade de expressão continua forte e vai reforçar ainda mais a nossa liberdade de dizer o que quiser. Os terroristas perderam o combate, mesmo que tenham conseguido matar tantas pessoas.

Não acredito em autocensura, porque o que se viu nas edições de ontem, mesmo de jornais ideologicamente muito distantes do “Charlie Hebdo”, daqueles que nunca tiveram simpatia por ele, foi um forte apoio. Eles publicaram com a irreverência característica do semanário.

Acho que esse espírito não está morto. Ao contrário, ele sempre foi um jornal muito anarquista, polêmico, que estava um pouco marginalizado. Hoje, ele se transformou em um símbolo, isso lhe deu uma nova vida, mas a esse terrível preço. [Jornalista e escritor francês em depoimento a Leticia Fernandes]

EUGÊNIO BUCCI“Indignação é fundamental”: Jornalista diz que risco de autocensura faz com que seja ainda mais importante afirmar: “Je suis Charlie”

O risco de autocensura é considerável. Eu e você vamos pensar diferente diante da possibilidade de publicar uma piada sobre o islamismo ou Maomé. Não há possibilidade de que este ato terrorista não venha aterrorizar jornalistas, editores e pessoas comuns. Isso é o terrorismo. É propaganda, é uma espada na cabeça, tudo isso que a gente já sabe, infelizmente.

Por isso, é indiscutível que pode haver um adensamento desse impulso de autocensura. Por isso é tão importante que circule a mensagem “Je sui Charlie” (eu sou Charlie). Que as pessoas se manifestem, que outras publicações comecem a publicar as charges. Dessa maneira, elas estarão se somando ao que os cartunistas faziam, de tal forma que serão tantas, que será impossível matá-las.

Este é um atentado perpetrado por forças das sombras, que não pertencem à ordem pública. Estão fora da lei, fora do Estado e fora das instituições.

Da mesma forma que agem os traficantes, milícias e grupos paramilitares contra jornalistas em países como México e Colômbia. São também forças fora de qualquer instituição legal, qualquer esfera estatal, que aparecem assim das sombras, o que agrava o sentimento de desproteção das vítimas. Isso é um componente muito forte do terror.

Contra tudo isso, é fundamental que a indignação não cesse. Que as autoridades públicas assumam um compromisso mais claro de proteção da liberdade e que o discurso jornalístico não abra mão do humor, mas saiba ser, também, o discurso da tolerância. Que evite a estigmatização — um exemplo disso é evitar a associação direta entre islamismo e terrorismo, o que não é verdade. É preciso convidar as pessoas para uma base comum de convivência, em vez de demonizá-las. Criminosos devem ser julgados e punidos; religiões, não. [Jornalista e professor da ECA-USP em depoimento a Thiago Herdy]

GREGORIO DUVIVIER“Proibir piada é potencializá-la’: Gregorio Duvivier diz viu fanáticos religiosos brasileiros se sentindo vingados pelas ações dos terroristas

O que aconteceu mostra uma escalada do fundamentalismo, que não para de ameaçar e de crescer. Esse é o perigo de misturar religião e poder. Quando a tragédia aconteceu, muita gente tentou dizer que era um ataque dos pobres imigrantes contra a elite branca, mas não se trata disso, se trata de terrorismo violento contra a liberdade de expressão. O “Charlie Hebdo” estava longe de ser xenofóbico, ele batia em todos os lados, inclusive nos poderosos. Não é um ataque do oprimido contra o opressor.

Esse foi um golpe muito forte na liberdade de expressão em seu cerne, num tipo de humor que não tem nada de rasteiro. Muito pelo contrário, era a fina flor do humor político, eles tinham plena consciência da dimensão política do que estavam dizendo. É criminoso responsabilizar os humoristas por isso. As charges não eram ataques pessoais, eram ataques a figuras mitológicas, que agradam a uns e não agradam a outros. Ninguém é obrigado a respeitar o sagrado dos outros. Para os hindus, a vaca é um animal sagrado, para os rastafaris é a maconha. O sagrado é relativo, essa história me enerva muito.

Vamos continuar fazendo humor, defendendo com unhas e dentes a liberdade de expressão. E jamais tomar partido dos terroristas. Vi fanáticos religiosos brasileiros se sentindo vingados, dizendo que os humoristas brasileiros deveriam aprender com o que aconteceu na hora de brincar com evangélicos, quase com uma inveja branca dos terroristas. Falaram muito isso para nós, do Porta dos Fundos ontem e hoje.

Eu torço para que o humor fique mais forte, o humor sempre se alimentou muito do ódio. Proibir uma piada é a melhor maneira de potencializá-la, e os terroristas não parecem saber disso. [Humorista em depoimento a Liv Brandão]

FERNANDO RAPA“Não vamos baixar o tom”: Editor afirma que liberdade tem que resistir a pressões violentas e não violentas

A cada dia temos um trabalho de reforçar a ideia de liberdade de expressão, porque sempre aparecem novos fatores para destruí-la. A liberdade de expressão está ameaçada por diferentes poderes. Hoje, enfrentamos o radicalismo islâmico, mas também há outros poderes que tolhem essa liberdade: a Igreja Católica, os bancos, a publicidade nos jornais. Na Espanha, temos uma monarquia, a Igreja, e eles sempre fazem muita pressão para que a gente não publique certas coisas.

Há muitas formas de ir contra a liberdade de expressão, algumas violentas e outras não violentas. A liberdade de expressão está em risco, sim, porque muitas vezes achamos que damos um passo para frente, mas depois retrocedemos rapidamente. Cada meio verá (como agir). Na “Mongolia”, aqui na Espanha, a gente sempre fala que a sátira é uma ficção, e ninguém mata uma pessoa porque ela escreve um livro sobre a vida de Hitler, por exemplo. O humor é uma ficção. A sátira está mais forte ainda. O que é saudável dos meios de comunicação é a mensagem e o compromisso, e eles não podem fraquejar nisso. Não vamos baixar o tom.

É importante agora garantirmos a liberdade para que a autocensura não aflore, porque é um sentimento natural de insegurança, em que as pessoas podem chegar a fazer isso. Quando há violência física, muito mais. Mas acho que essa não é uma responsabilidade nossa, o importante é trabalharmos para que eles (os autores do atentado) não triunfem. Temos que derrotá-los a cada dia. [Criador da revista satírica espanhola ‘Mongolia’ em depoimento a Leticia Fernandes]