Desde o massacre que dizimou parte da redação de Charlie Hebdo, os sobreviventes eram unânimes em afirmar uma evidência: estar nas bancas na quarta-feira, 14 de janeiro. Com as vendas em franco declínio, o número que saiu dia 7/1, dia do atentado, imediatamente esgotado, havia tido uma tiragem de 45 mil exemplares. O próximo que sai na quarta, 14 de janeiro, terá 3 milhões de exemplares.
Passado o primeiro momento de estupefação e horror, os jornalistas de Charlie foram recebidos no jornal Libération,que já havia abrigado a redação completa do semanário em 2011, por ocasião do incêndio criminoso que, como uma primeira advertência da parte de fundamentalistas islâmicos, destruiu a sede do jornal satírico. Charlie tinha publicado um número provocativo chamado Charia Hebdo, que não agradou nada aos islamistas radicais.
A França acordou na segunda-feira (12/1) reconfortada pelos quase quatro milhões de franceses que foram às ruas de Paris e de diversas cidades para dizer “não” ao terrorismo e afirmar os valores da liberdade de expressão. “Não podemos esquecer que eles são filhos de Voltaire”, disse a filósofa Elisabeth Badinter referindo-se aos caricaturistas mortos.
Barril de pólvora
Mais de 40 representantes estrangeiros, chefes de Estado, de governo ou embaixadores, abriram em Paris o surpreendente cortejo que conseguiu reunir líderes que logo garantiram presença e outros que confirmaram a vinda apenas na véspera, como o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu e o presidente da Palestina, Mahmoud Abbas.
Para o sociólogo e filósofo Edgar Morin, em artigo publicado no Le Monde, o atentado terrorista contra o jornal satírico significou a brusca explosão no solo francês da guerra do Oriente Médio e da guerra internacional que a França realiza neste momento ao lado dos Estados Unidos contra o Estado Islâmico. Além disso, há em terras africanas militares franceses em guerra contra o terrorismo islâmico, no Mali e na República Centroafricana.
Morin lembrava que os “fanáticos pensam que combatem os ‘cruzados’ e seus aliados judeus (que os cruzados massacravam), mas os islamófobos reduzem o árabe à sua suposta crença, o Islã, assim como reduzem o islâmico a um islamista (fanático religioso), o islamista a um integrista e o integrista a um terrorista”.
“Esse anti-islamismo vem se tornando cada mais radical e obsessivo e tende a estigmatizar toda uma população ainda mais importante em número que a população judaica, que foi estigmatizada pelo antissemitismo que precedeu a Segunda Guerra, e teve continuidade com o governo colaboracionista de Vichy”, afirmou Morin.
Já o jornalista inglês Robert Fisk vê esse ato terrorista em solo francês, executado por dois jovens de origem argelina, como vestígios da guerra colonial da Argélia (1954-1962), na qual mais de 200 mil argelinos foram mortos e mais de 3 mil desapareceram. Naqueles anos, milhares de independentistas argelinos passaram pelas salas de tortura dos paraquedistas franceses, comandados pelo general Jacques Massu e pelos esquadrões da morte do então coronel Paul Aussaresses.
Essa guerra deixou feridas ainda não totalmente cicatrizadas e permanentemente reativadas pela extrema-direita francesa. Como convencer a um eleitor do Front National de Marine Le Pen que um descendente de argelinos nascido na França é tão francês quanto ele, branco de olhos azuis, saudosista da “Argélia francesa”? No entanto, os fanáticos islamistas (em francês há dois adjetivos originários de Islã: islamique, de cultura ou de religião islâmica, e islamiste, o ramo fanático e dijahdista que se reivindica do Islã) ignoram muitas vezes esses detalhes históricos ligados à Argélia. O ódio ao Ocidente aumentou depois da invasão do Iraque, quando George W. Bush e seus aliados transformaram a região em um barril de pólvora, origem do atual Estado Islâmico.
As caricaturas de Maomé
Os radicais fanáticos não perdoaram o grande “pecado” dos jornalistas de Charlie Hebdo: a publicação no número 712, de 8 de fevereiro de 2006, das famosas caricaturas de Maomé, anteriormente publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten. Este havia lançado um desafio a 12 cartunistas: “Desenhem o que a figura de Maomé inspira a vocês”. As charges foram publicadas no Jyllands-Posten,que foi imediatamente vítima de uma fatwa (sentença de morte) condenando os “heréticos” que ousaram representar o profeta do Islã – irrepresentável, segundo os fundamentalistas. Embaixadas dinamarquesas foram incendiadas em alguns países muçulmanos e até hoje o diretor responsável pelo jornal Jyllands-Posten vive protegido por um esquema de segurança digno de um chefe de Estado.
A publicação na França era uma espécie de desafio dos irreverentes cartunistas e jornalistas, como que para testar a liberdade de expressão na terra de Voltaire. Charlie Hebdo – criado em 1970, extinto em 1981 e relançado em 1992 –, num ato de provocação e insolência, transformou as polêmicas charges de Maomé em um número especial no qual em desenho de Cabu (um dos mortos no atentado), publicado na capa, o profeta lamentava: “C’est dur d’être aimé par des cons” (É duro ser amado por babacas). Nova fatwa é lançada pelos extremistas islâmicos, dessa vez contra os caricaturistas e responsáveis de Charlie Hebdo, que teve uma tiragem recorde de 400 mil exemplares.
Os jornalistas foram processados por associações de defesa do culto muçulmano e a Justiça não os condenou, em nome da liberdade de expressão.
Começava ali a história recente do semanário satírico, que sempre se definiu como irrespeitoso de todas as religiões, blasfematório, mal-educado, sem nenhuma preocupação em ser politicamente correto. Muito pelo contrário. O diretor responsável pelo jornal, Charb, tinha segurança policial nos últimos anos por causa das ameaças de morte que recebia.
A polêmica sempre fez parte do DNA do jornal. Em 2008, em pleno governo de Nicolas Sarkozy, um dos mais geniais caricaturistas de Charlie Hebdo, o velho e irreverente Siné, escreveu, a propósito de Jean Sarkozy, filho do presidente, que ele tinha se convertido ao judaísmo para se casar com a herdeira do grupo Darty, proprietário de uma rede de lojas de eletrodomésticos na França. Siné comparava Jean ao pai, Nicolas, em matéria de oportunismo e previa: “O rapaz tem longa carreira pela frente”.
O comentário de Siné, citando informação do jornal Libération, foi criticado por um jornalista judeu que não trabalhava em Charlie Hebdo e que considerou o texto antissemita. Imediatamente, o então diretor de Charlie Hebdo, Philippe Val, também judeu, demitiu Siné – que apelou à Justiça do Trabalho. Seu texto nada tinha de antissemita, consideraram os juízes, dando ganho de causa a Siné, que no fim do longo processo recebeu uma indenização de 90 mil euros, o dobro do que seu advogado solicitara.
A polêmica dividiu jornalistas e caricaturistas e deu origem ao jornal Siné Hebdo, semanário satírico que não durou mais de dois anos. O novo jornal, assim como Charlie, tinha dificuldades em equilibrar suas contas, apesar da grande mobilização que surgiu na época em torno de Siné, visto como vítima de paranoicos que veem antissemitas por todo lado.
Nos últimos anos, o próprio Charlie Hebdo vinha enfrentando dificuldades econômicas sérias que ameaçavam sua sobrevivência. No cruzamento do Boulevard Raspail com o Boulevard du Montparnasse, uma grande banca de jornais que chegou a receber 20 exemplares de Charlie Hebdo por semana, nos últimos anos estava recebendo apenas 5 exemplares.
Solidariedade mundial
Num país que defende como um princípio intocável a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e o pluralismo, o presidente François Hollande chegou a receber no Palácio do Eliseu os responsáveis de Charlie Hebdo, em setembro de 2014. Como se sabe, assim como o fundamental Canard Enchaîné, jornal satírico mais antigo em circulação na França (desde 1915), Charlie Hebdo se mantém apenas com o produto da venda em banca, pois, por princípio, não tem publicidade. O único compromisso dos jornalistas do Canard e de Charlie é com os leitores.
Logo depois do atentado, um élan de solidariedade mundial começou a se manifestar para não deixar que Charlie Hebdo seja soterrado pelas balas dos terroristas. O Estado, por meio do Ministério da Cultura, destinou ao jornal 1 milhão de euros.
E na quarta-feira (14/1), os sobreviventes de Charlie vão pôr um novo jornal nas bancas para provar que não têm medo.
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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris