Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A valentia de ser livre

O covarde atentado contra o jornal francês Charlie Hebdo, no qual foram mortas 12 pessoas – entre elas oito jornalistas e dois policiais –, mostra a que grau de intolerância se pode chegar quando se abdica da liberdade de pensar. O mundo ficou mais triste depois do ocorrido na redação do jornal satírico. No entanto, mais do que a força da violência, o atentado evidencia a coragem de um punhado de homens que apesar das ameaças que vinham recebendo desde 2006 e do incêndio criminoso que o jornal sofreu em 2011 não se curvou ao poder da violência e se manteve leal àquilo que o Ocidente produziu de mais valioso: a defesa da liberdade.

Apesar do que pode parecer à primeira vista, não foi a violência que venceu em Paris no dia 7 de janeiro de 2015. Venceu a valentia de ser livre. É nesses dolorosos momentos que se revelam o valor e a beleza da liberdade. Ficou evidente aos olhos do mundo inteiro a diferença entre ser livre e ser fundamentalista. Entre pensar por conta própria e abdicar da própria racionalidade. Entre a tolerância e a intolerância. Entre o poder da criatividade de uma caricatura e a covardia de um rifle Kalashnikov, que mata – entre outros – um cartunista de 80 anos.

Ainda que abalado e triste pelas 12 mortes, o Ocidente sai grande do episódio. Mostra que a cultura ocidental – apesar de todas as suas inegáveis deficiências – foi capaz de produzir um sistema aberto e tolerante, no qual o pluralismo não é uma ameaça, mas um enorme bem, que merece ser protegido.

É fundamental que a aposta incondicional na liberdade, que a revista Charlie Hebdo soube viver desde sua fundação, seja mantida. Não cabe à violência ditar a pauta. Não cabe à vingança – burra e assassina vingança – estabelecer o que se escreverá, o que se publicará, como se viverá.

Resposta livre

O atentado, planejado para ser executado durante uma reunião de pauta, mostra a importância da liberdade de imprensa. Os fundamentalistas identificaram aquela reunião como o seu inimigo, pois era ali que se condensavam a liberdade, a criatividade e – por que não dizer? – a irreverência. E a liberdade incomoda.

A liberdade não é um jardim florido onde não há tensões. Respeitar a liberdade alheia exige uma grandeza moral que os assassinos não tiveram. Exige ouvir ideias com as quais não se concorda. Exige ler textos que às vezes irritam. Certamente, muitos dos franceses que foram às ruas no mesmo dia do atentado, para manifestar a sua solidariedade e o seu respeito pelos jornalistas e policiais mortos, alguma vez não concordaram com as charges publicadas no Charlie Hebdo. Mas isso não os impediu de portarem cartazes com a frase “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie). Essa é a grandeza da cultura ocidental – a capacidade de identificar-se com o outro, mesmo quando o outro não é mero espelho das próprias ideias.

Num mundo que se viu forçado ao luto no início de 2015 ao deparar com a barbárie na capital francesa, o que está em jogo agora é a reação diante da violência covarde. Ficou evidente ao mundo como os fundamentalistas agem – com violência e vendo em quem pensa de forma diversa um inimigo. Agora, a palavra está com o mundo ocidental. Como ele reagirá? Será uma resposta na mesma moeda, com intransigência, com uma convivência menos aberta? Ou será uma reafirmação da liberdade? Uma aposta mais profunda na liberdade e na compreensão do diverso?

A força do Ocidente está na sua capacidade de não oferecer simplesmente uma resposta automática, na mesma moeda. Olho por olho, dente por dente. Abdicou-se dessa lógica perversa há muitos séculos. Agora, é preciso dar uma resposta livre e criativa, que supere a lógica da violência e da intolerância – mesmo diante de atos que fazem duvidar da racionalidade humana. Afinal, seria uma grande derrota se fossem os violentos a determinarem a identidade do Ocidente. A liberdade é sempre autodeterminação.

Só com uma resposta livre – não condicionada pela ação dos violentos – o mundo ocidental poderá agradecer a valentia desses homens que souberam defender, com a sua caneta e com a sua irreverência – e, afinal, com suas vidas –, a liberdade e a criatividade.