Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Atentado confirma choque de valores do mundo civilizado’

Especialista em estudos do Islã e do mundo muçulmano, o vice-diretor do Centro para Transformação Social de King’s College, Carool Kersten, disse ao GLOBO que o atentado à redação da Charlie Hebdo é a confirmação de um choque de valores em um mundo globalizado. Ele diz que o risco para a Europa e Estados Unidos continua e garante que, para atenuá-lo, os países precisam reconher a insatisfação econômica, social e política das suas crescentes comunidades muçulmanas.

O atentado à revista francesa Charlie Hebdo é um sinal de risco para outros países da Europa?

Carool Kersten – O que aconteceu mostrou a verdadeira dimensão do que é viver em um mundo globalizado, com um Islã globalizado. Isso afeta as condições de segurança dos países. As atrocidades que aconteceram em Paris são um exemplo muito sério de um choque de valores. Enquanto para a cultura do Ocidente já não há mais temas que sejam considerados sacrados a ponto de torná-los imunes a críticas e sátiras, no mundo muçulmano existe uma opinião geral sobre insultos e blasfêmia. O que vimos ontem compromete a liberdade de expressão. Foi a ação de pessoas que acham ter licença para usar violência para impor as suas convicções. Estamos diante de um exemplo muito trágico de dois sistemas de valores.

Como evitar, então, reações explosivas ao que é considerado insulto ou blasfêmia?

C.K. – Embora muitos discordassem das caricaturas e se sentissem ofendidos por elas, não quer dizer que não condenem o ataque. Existem várias formas de demonstrar o descontentamento: protestos, ações legais na justiça. Mas casos como estes, que mostram uma reação extrema, evidenciam as dificuldades de se lidar com este conflito de sistemas de valores e como se pode perder depressa o controle da situação. Integrantes do Estado Islâmico e de outros grupos, bem como seus simpatizantes escolheram a intimidação para fazer valer as suas convicções: quem ousar discordar vai pagar com a vida.

E como lidar com essa situação, então?

C.K. – É claro que a primeira reação sempre estará relacionada com a segurança pública. A discussão sobre o sistema e as diferenças culturais passam a ser secundárias. Mas não podemos fugir da crescente interconexão do mundo, das diversas culturas e sistemas de valores. Pode acontecer de novo. É extremamente preocupante ver a licença para usar violência, como ontem. É preciso buscar o apoio dos elementos mais moderados das comunidades, uma aproximação, para que eles ajudem a evitar a radicalização.

Tudo isso significa que a Europa continuará sendo um alvo fácil. Como os países terão de lidar com este choque de civilizações?

C.K. – Não resta dúvida. A presença de comunidades muçulmanas no mundo Ocidental é cada vez maior. Existem comunidades imensas na Europa e nos Estados Unidos. Não se pode ignorar a existência de elementos de insatisfação. E as causas não são puramente religiosas. Envolvem também perspectivas econômicas e políticas. Não se percebe por parte dos muçulmanos que o Ocidente esteja de fato querendo resolver os problemas no Oriente Médio. Não será possível enfrentar a radicalização e a explosão da violência se os países continuarem ignorando, ou fingindo que não existem, as questões sobre desigualdades sociais, econômicas, falta de acesso à educação. Além disso, é preciso mostrar vontade de resolver as questões politicas.

O avanço de partidos de extrema direita e do discurso anti-imigração não estimula ainda mais o conflito de valores?

C.K. – Certamente têm efeito. Toda ação tem uma reação. Trata-se de uma dinâmica que não é nem um pouco saudável. As sociedades estão ficando polarizadas. Eventos como o de ontem são extremamente negativos. Criam um retrocesso muito grande nas tentativas de integração, coesão. E tornam a alimentar os discursos da extrema direita. ‘viu o que eu estou dizendo? O que eles podem fazer?’, dirão os integrantes dos partidos mais radicais.

Isso não tem implicações também para os discursos dos partidos mais tradicionais também, que vêm perdendo eleitores para a extrema direita na Europa?

C.K. – Esses partidos mais ‘mainstream’ terão de agir com muito cuidado. O momento agora exige uma cautela tremenda para evitar as declarações e politicas intolerantes. O mais difícil será achar a resposta adequada para lidar com o que aconteceu e continua acontecendo.

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Vivian Oswald, do Globo