Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Charlie’ superará sua morte

Na quarta-feira [7/1], em pleno centro de Paris, dois assassinos entram na redação do semanário satírico Charlie Hebdo e assassinam cinco cartunistas e cinco dos seus colunistas. Não foi ao acaso. Eram profissionais, especialistas. E foram bem sucedidos. Charlie Hebdo foi decapitado. Morto. Os assassinos venceram.

E também perderam. Charlie continua se expressando. Ele grita, mais forte do que nunca. Um imenso soluço de furor, indignação e amor há 24 horas toma conta de Paris, da França e do mundo inteiro. Em todas as partes a estupefação é idêntica. De Roma a Londres, e lugares mais distantes, os jornais se manifestam indignados, feridos, mortificados pela morte de 10 jornalistas em Paris. “Somos todos Charlie Hebdo!”, proclama o planeta. Ontem, a pergunta era se Charlie conseguiria sobreviver à sua morte.

Eis a resposta: na próxima quarta-feira, o semanário, graças a alguns sobreviventes e ao apoio de outros jornais (Le Monde, Libération, TV Canal Plus etc.) estará nas bancas. Normalmente a tiragem é de 60 mil exemplares. Mas a próxima edição será de 1 milhão. E, sem dúvida, haverá uma segunda tiragem. Assim, graças a dois infames, um semanário que era lido por uma pequena minoria de leitores (contestatários, anarquistas, libertários, pessoas que são anticlericais, contra o Exército, o papa e todo tipo de autoridade) repentinamente tornou-se um “tesouro” do país e quase o seu estandarte.

Essa unanimidade é impressionante: mesmo aqueles que ignoravam o Charlie Hebdo, que criticavam o semanário, que o vilipendiavam, que o desdenhavam, hoje o celebram com lágrimas na garganta. Charlie Hebdo tornou-se a bandeira ensanguentada de todo um povo. Estranha metamorfose! Figaro, L’Express, Le Point, Libération, L’Humanité, da extrema-esquerda à extrema-direita, todos são solidários com o pequeno bando “grosseiro” mas tão generoso, com seus risos sarcásticos, seu talento irredutível. Sobre o corpo devastado do Charlie Hebdo, os espíritos cúmplices do cartunista Cabu se recolhem. Mas ao seu lado inclinam-se também aqueles que eram saco de pancada de Cabu: os burgueses, os conformistas, as personalidades públicas, os ricos, os letárgicos.

Essa unanimidade é afortunada. Desde a manhã de ontem, diante das homenagens ao semanário, uma ideia foi retomada pelos inúmeros comentaristas que se lançavam avidamente sobre o primeiro microfone que surgia. A ideia de que a ignomínia reafirmou, de um só golpe, a unidade da consciência francesa. As balas dos assassinos traçaram uma fronteira misteriosa que separa os “civilizados” e os “bárbaros”, os “humanos” e aqueles que não são “humanos”.

Velhos ódios

Uma estranha magia: a França entra na era da “união nacional”. Esquece as divisões, suas vãs e sórdidas querelas. Ela se compõe apenas de “irmãos”. As balas dos infames apagaram todas as fissuras que desfiguravam a face intumescida do país. Um milagre! Entramos na era da concórdia, do amor e do consenso universais.

O que não é verdade, claro. O domingo será consagrado a uma homenagem de todo o país às vítimas do drama. Perfeito. Bela ocasião para manifestarmos essa “união nacional” que a morte dos dez jornalistas subitamente forjou. Apenas, e imediatamente, uma discrepância. A líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, deixou claro que seu partido participará da homenagem.

Logo em seguida, membros da esquerda, do centro e até entre os socialistas manifestaram sua indignação: “Como? A Frente Nacional, os fascistas, um dos alvos constantes do semanário, quer desfilar sob o emblema do Charlie Hebdo? Uma indecência, vade retro Satanás! Não e não! A Frente Nacional não participará etc etc.”

E quanto à questão principal, ou seja o Islã? Desde a manhã de ontem, muçulmanos são insultados nas ruas. Locais de culto muçulmano foram conspurcados. Numa escola em Paris, uma menina de oito anos foi apedrejada e ferida no rosto por seus colegas de classe porque a mãe é muçulmana.

Na realidade, o horror da carnificina é instrumentalizado em sentidos opostos pelas diferentes sensibilidades políticas. Para uns é preciso pôr fim a essa guerra de religiões que devasta a França há anos, por meio de uma “integração” e o país se abrindo para o outro, o estrangeiro. É preciso conversar com o Islã cívico e responsável que abrange os 99% dos muçulmanos da França.

Para outros, pelo contrário. Para Marine Le Pen, com certeza, mas também para uma grande parte da direita e até da esquerda, é necessário entender que a tolerância demonstrada pela República com relação aos muçulmanos é contra a natureza, um fracasso e um desastre.

Bem longe de estender as mãos para os muçulmanos, é preciso ao contrário controlar drasticamente os símbolos dessa religião. Ao mesmo tempo é preciso limitar a imigração proveniente de países muçulmanos. Para os mais exaltados, como o excelente polemista Eric Zemmour, seria necessário simplesmente expulsar da França os cinco milhões de muçulmanos. Assim, longe de favorecer a união nacional e a reconciliação, o atentado de quarta-feira, ao despertar velhos ódios tribais ou religiosos, pelo contrário, marca como ácido as cicatrizes que desfiguram há tantos anos a face da França.

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Gilles Lapouge é correspondente do Estado de S.Paulo em Paris