Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Civilização Futebol Clube

Uma cena extraordinária se desenrola na minha frente, enquanto escrevo. Muçulmanos africanos jovens posam para selfies com idosas judias no metrô. Mulheres cobertas da cabeça aos pés, seguram cartazes para as câmeras: “Não no meu nome.”

O slogan “Judeu, Policial, Muçulmano e Republicano” está em toda parte no oceano de gente. Uma gente que, no dia a dia, não comete atos de bravura, mas enfrenta o frio e novas ameaças de terrorismo para impedir que a noção de coragem não seja sequestrada.

Uma comissão de frente que jamais será repetida na minha vida coloca Bibi Netanyahu a quatro corpos de Mahmoud Abbas. Ditadores hipócritas estão de mãos dadas com líderes com mandatos legítimos. Mas a hipocrisia dos que defendem a liberdade e a decência não é a morte destes valores.

Paris é a capital do mundo neste domingo. Mas não é a capital da dor. Tragédia maior está nos campos de refugiados sírios morrendo de frio, no massacre de possivelmente dois mil nigerianos logo depois da chacina na Charlie Hebdo pelo Boko Haram, o mesmo grupo que, no sábado, inaugurou a era da criança-bomba, detonando uma menina de 10 anos num mercado.

Violência recorrente

Uma medida do sucesso do terrorismo é a capacidade de nos confundir, de interromper nossas vidas com tal força que passamos a questionar o que até a véspera era rotina. Depois de 12 horas acompanhando a sequência de eventos em Paris após o massacre, estava pronta para uma interrupção. Liguei a TV para assistir ao comediante que se tornou uma espécie de pastor da irreverência, Jon Stewart. Na nefasta era George Bush, Stewart emergiu para preencher vácuos deixados pelo jornalismo americano, tímido na exposição dos acontecimentos que levaram à invasão do Iraque. Stewart abriu seu telejornal de cabeça baixa e confessou estar igualmente perplexo. Não se faz comédia para arriscar a vida, ele notou. E concluiu: políticos, celebridades, todos os recipientes de seu humor implacável podem vê-lo como adversário, mas o horror de Paris é uma lembrança de que o comediante e seus alvos fazem parte do “time civilização”.

Reconheço no comentário simplista de Stewart minha reação, no dia 11 de setembro, quando vi a fumaça cobrir o céu de Manhattan, enquanto as torres gêmeas desmoronavam. Muitos franceses consideram o último dia 7 seu 11 de setembro, como confirmou a manchete do jornal Le Monde.

A reação que esperei então, como nova-iorquina adotada, e que os franceses esperam é imperfeita – ela pode vir em hashtags, em recém-convertidos a causas – mas ajuda a defender nossa humanidade. “Somos todos americanos”, clamaram os europeus naquele setembro de 2001, antes de Bush derramar ralo abaixo a solidariedade atraída pelos atentados.

Uma ouvinte telefonou para uma rádio nova-iorquina que debatia o passado colonialista francês e a evidente diferença de integração dos muçulmanos nos Estados Unidos e na França. Ela disse ao apresentador. “Não se lembra como doeu quando fizeram o mesmo conosco na semana do 11 de setembro?”

O que me leva a gente como uma acadêmica brasileira que, momentos após o massacre, especulou sem base alguma sobre os autores e pontificou sobre a marginalização das minorias árabes na França. Insultar o papa é possível porque os católicos estão no poder, disseram outros. Mas insultar o profeta é oprimir o povo. Um dos mais ouvidos ensaístas sobre raça na imprensa dos EUA só se manifestou para denunciar racismo nos cartuns da Charlie Hebdo. Um romancista nigeriano-americano se apressou em escrever que o Ocidente continua a perpetrar violências contra a cultura dos três assassinos.

Não há paternalismo maior do que racionalizar a violência como reação à não violência de se desenhar um cartum.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York