O que aconteceu em Paris em matéria de terrorismo remete a uma série de questões. Vamos lá então. As ações militares contra civis foi cultivada pelos nazistas. A al-Qaida, o Estado Islâmico e grupos próximos, pode-se dizer até satélites, têm essa característica. Armados inicialmente pela CIA e pelo Pentágono, estão pescando no mar revolto, na confusão que tomou conta em geral do mundo árabe onde a falta de política está sendo substituída por uma interpretação caricata da religião, que por sua vez se propõe matar – literalmente – qualquer tipo de expressão dissidente.
Os objetivos civis escolhidos, neste caso o Charlie Hebdo, o supermercado com produtos judaicos e a maneira de operar fazem lembrar os esquadrões da morte no Brasil, Uruguai e Argentina, com a sucessão interminável de crimes, o assassinato do deputado Rubens Paiva no Brasil, dos parlamentares uruguaios Zelmar Michelini e Héctor Gutierrez Ruiz, em Buenos Aires, do general Carlos Prats, em Buenos Aires, e do boliviano revolucionário Juan Jose Torres, também na capital argentina, com a ajuda da CIA, e mesmo Orlando Letelier, em Washington, de responsabilidade do Estado ditatorial chileno.
Refrescando a memória
Na Europa também ocorreram crimes da mesma natureza fascista, como o massacre na estação de trens de Bologna, em agosto de 1980, assumidos por todas as facções de direita vinculados a serviços de inteligência, de responsabilidade, portanto, do terrorismo de Estado.
Não podemos esquecer do terrorismo praticado pelo norueguês Breivitk, nazista de carteirinha, que em julho de 2011 matou 76 jovens socialdemocratas na ilha de Utoya, próxima de Oslo.
Não podemos também esquecer dos drones estadunidenses que no Paquistão mataram uma família que participava de uma festa de casamento, um exemplo típico de terrorismo de Estado, mas que não teve o estardalhaço midiático.
Em todos esses casos a grande imprensa, cada vez mais controlada pela direita e pela ultradireita, inclusive no Brasil, tentou desviar, encobrir e criar na opinião publica a ideia que o fator ideológico de tais crimes hediondos era outro qualquer, até desvios psíquicos, menos o ideológico intrínseco à direita assassina.
Agora estão atuando de forma mais sutil e perversa, condenam o atentado, mas sugerem que na mesma bolsa dos terroristas estão todos os árabes e muçulmanos e principalmente se postulam de defensores da liberdade de expressão, quando todos sabemos que, no Cone Sul pelo menos, certos grupos midiáticos engordaram fomentados pelas ditaduras e depois, na democracia, como monopólios de fato, liquidaram com qualquer tipo de expressão alternativa. Com a palavra, por sinal, as Organizações Globo.
Teoria na prática é outra
Miriam Leitão disse em seus espaços no sistema Globo que “Nous Somme Tous Charlie”, que liberdade de expressão é um direito que todo cidadão tem garantido pela Constituição e que esse direito é exercido pelos jornalistas profissionalmente. Exatíssimo, mas só que a prática das Organizações Globo tende sempre a ser absolutamente contraria a esse enunciado, uma vez que se consideram donos e senhores de praticamente toda a informação que se produz e divulga no Brasil. Na prática o são, porque o grupo é oligopólico. Informação essa que no plano essencial e estratégico apresenta um enfoque unilateral claramente ideológico e de direita, tanto no conteúdo como na linguagem.
Por estas e ainda muitas outras, discutir o teor das charges no ato terrorista contra o humor é absolutamente secundário. Na tradição cultural francesa, que pode não ser a mesma que em outros países, o que a turma do Charlie Hebdo, o Pasquim francês, fazia era seguir esses preceitos.
E quem não gosta disso pode não comprar o exemplar, mas de forma alguma usar como pretexto a prática extremista de direita. No Brasil, a mesma extrema direita tentou silenciar o Pasquim, inclusive colocando uma bomba na sua redação, que se explodisse, o que felizmente não aconteceu, provocaria uma tragédia.
Nos dias de hoje, os extremistas não fazem por menos quando afirmam que a culpa do estupro é da própria mulher, inclusive às vezes pela indumentária. No caso do senso comum, alguns tentam colocar na pauta de discussão o teor das charges, sendo que os mais norteados pelo senso comum atribuem o que aconteceu ao teor das charges. Não é por aí.
Humor incomoda quem está de mal com a vida
Humor muitas vezes vale mais do que adjetivos em textos. Por isso os que estão de mal com a vida e professam ideologias do gênero nazista não se conformam com publicações como Charlie Hebdo e tantas outras pelo mundo afora.
E também tem um fato que precisa ser melhor esclarecido, qual seja o de aparecer o documento de identidade de um dos supostos terroristas no porta mala do veículo roubado. Terrorista em algum canto do mundo anda com documento de identidade? Segundo declarações do ex-subsecretário de Tesouro estadunidense, Paul Craig Roberts, o “esquecimento” da identidade de Said Kouachi lembra o que aconteceu em 11 de setembro de 2001 – por ocasião do ataque terrorista nas Torres Gêmeas, em Nova York, as autoridades revelavam também o encontro do passaporte de um dos terroristas.
Qualquer semelhança é apenas mera coincidência?
Marine Le Pen, fascista declarada, já se aproveitou da comoção popular para tentar recolocar em pauta a pena de morte, abolida há mais de 30 ano por François Mitterrand. A famigerada política francesa ainda quer reforçar a pauta da extrema-direita europeia de impedir o livre trânsito com continente.
Em suma, além de reviver o Charlie, é importante agora também evitar uma desgraça que seria a ascensão deste grupo no governo francês e demais países que passam por crise econômicas e agora o acirramento da islamofobia.
Somos todos Charlie!
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Mário Augusto Jakobskind é jornalista