Hoje à tarde [domingo, 11/1] (15h em Paris), o presidente François Hollande, a chanceler alemã Angela Merkel e os chefes de governo da Espanha, do Reino Unido e da Itália estarão a postos na Place de la République. Deverão participar da programada marcha monumental, solene e republicana em homenagem aos fuzilados no atentado que dizimou a redação do semanário satírico Charlie Hebdo.
A esperada massa humana se dividirá em três percursos até a Place de la Nation e, por certo, se verão centenas de milhares de manifestantes empunhando lápis, canetas e variações do singelo cartaz-ícone sob fundo negro que resume o sentimento global: Je suis Charlie, Nous sommes tous Charlie, Lyon est Charlie, L’Europe est Charlie.
A rapidez com que o bordão solidário se espalhou na internet pode ter dado a impressão de que a parte da sociedade mundial que se considera civilizada assumiu a causa dos cartunistas assassinados. Não é bem assim. Charlie Hebdo não cabe numa hashtag. Nem numa marcha de solidariedade. Muitas das publicações que hoje honram os cartunistas mortos como mártires da liberdade de expressão teriam rejeitado como sendo de mau gosto, impróprios, talvez obscenos, os desenhos de George Wolinski, Stéphane Charbonnier (Charb), Jean Cabut (Cabu), Philippe Honoré e Bernard Verlhac (Tignous).
Eles eram tudo isso, e de propósito. Não raro de mau gosto, impróprios ou obscenos, usavam a liberdade de provocar e distribuir blasfêmias em dosagens iguais a todas as vítimas de seus desenhos. Sobretudo, exercitaram um humor contra a presunção de que algum indivíduo ou grupo é dono exclusivo da verdade. Com sua forma anárquica de desmoralizar tudo o que se pretende venerável, sagrado ou poderoso, o semanário sobrevivia com uma tiragem que oscilava em torno dos 50 mil exemplares. Mas ocupava lugar nobre na França como instituição incendiária. Tinha o poder de desconcertar. Além de indomável e incorrigível, era impublicável em mídias convencionais.
Agenda decisiva
Não somos todos Charlie. Apenas eles o foram. Como observou o escritor americano Philip Gourevitch na revista New Yorker, “mesmo nas sociedades ocidentais mais livres, poucos jornalistas são Charlie”. Ele explica o motivo: “Porque arriscamos tão pouco por aquilo que dizemos valorizar tanto. Porque a maioria de nós é relativamente inofensiva, enquanto os Charlie estavam sempre prontos a ofender o que os ofendia. E não somos Charlie, hoje, porque estamos vivos.”
Eles não eram jornalistas comuns que refinam a arte do metiê. Foram cartunistas satíricos e provocadores que trabalhavam com o exagero, o excesso. Um tweet postado no dia do massacre pelo New York Times dizia que o Charlie Hebdo “sempre testou os limites da sátira”. Mas onde está escrito que sátira tem ou deve ter limites?
Nem o Times nem o Washington Post nem a CNN nem a agência Associated Press reproduziram em suas páginas os cartuns que estiveram na raiz dos ataques. “Temos por norma evitar a publicação de material que é clara, deliberada e desnecessariamente ofensivo a grupos religiosos”, explicou o editor executivo do Post à Columbia Journalism Review.
“Imagens”, escreveu o americano Arthur Goldhammer, do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Harvard, “ao contrário da palavra escrita, atravessam fronteiras linguísticas como se elas não existissem. Seu efeito é imediato e, no caso do Charlie, visceral.”
A sátira é perigosa e poderosa por embaralhar as coisas num mundo cada vez mais reduzido a debates simplistas entre dois extremos. É um tipo de humor que assume riscos altos e atua como arma contra qualquer dogma. É uma forma de comunicação complexa, enquanto o fundamentalismo (qualquer um) é para quem pensa em termos rígidos. Seu poder não é subestimado por nenhum poderoso.
Do comediante egípcio Bassem Youssef, forçado pelos militares a sair do ar na época da Primavera Árabe no Cairo ao recente ataque cibernético da Coreia do Norte à Sony contra a exibição do filme satírico A entrevista, o humor mordaz, de fato, morde.
Para o historiador britânico Timothy Garton Ash, professor de Estudos Europeus em Oxford, a garantia de liberdade de expressão exige mais dos meios de comunicação do que declarar Nous sommes tous Charlie. “A mídia da Europa deveria responder com a publicação coordenada, na próxima semana, de algumas charges do semanário satírico (e fornecer, junto) a explicação do motivo pelo qual as está publicando. De outro modo o veto dos assassinos prevalecerá.”
O colunista brasileiro Janio de Freitas publicou proposta semelhante no mesmo dia: jornais de todo o mundo deveriam publicar em suas primeiras páginas, num mesmo dia, a charge que levou o terrorismo islâmico a tramar vingança. Serviria de demonstração aos fanáticos que a violência praticada por eles “pode tornar universal o que pretendem reprimir”. “Papai morreu mas Wolinski vive”, disse a filha do genial desenhista.
Fica a dúvida de como os cartunistas do Charlie Hebdo ilustrariam a execução de que foram vítimas. É de se suspeitar que o resultado fugiria às regras do bom gosto. É certo, porém, que os criadores da revista decapitada ficariam perplexos ao estarem sendo homenageados como bastiões de uma liberdade que sempre consideraram periclitante e necessitada de oxigênio.
A atual veneração global de que são alvo certamente fabricaria uma charge demolidora e impiedosa – contra eles mesmos.
Em tempo: Mustapha Ourrad, jornalista de ascendência argelina e revisor do Charlie, foi um dos 12 mortos no atentado ao semanário. Era muçulmano. O policial Ahmed Merabed também. Estendido na calçada e já ferido pelos irmãos Cherif e Said, ligados à al-Qaida, foi executado com mais um tiro de Kalashnikov por proteger o direito do Charlie Hebdo de satirizar Maomé.
A França em sobressalto, a Europa desnorteada, o mundo em desordem e a mídia começam 2015 com uma agenda decisiva: o combate ao terror sem mexer na liberdade de expressão.
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Dorrit Harazim é jornalista