Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fundamentalismo e os limites da liberdade

Diante das manifestações em defesa da liberdade de expressão após o atentado contra o jornal Charlie Hebdo, tenho pensado que o tema merece um debate mais profundo. No ano passado, participei de uma petição para a retirada de dois itens de uma exposição artística financiada com o dinheiro público: uma representação da Santa Ceia em um prostíbulo e uma imagem da Virgem Maria envolta por baratas. Recebi um e-mail da direção do evento, declarando que “a obra está amplamente amparada pela garantia da liberdade de expressão” e que a curadoria “não vislumbrou elementos mínimos que indiquem violações a direitos transindividuais”. Não gostei. As obras não protestavam contra a corrupção do Banco do Vaticano ou contra os casos de pedofilia na Igreja. Parecia uma provocação gratuita e infundada. Não consigo comprar a ideia de que preconceito se combate com brincadeira de mau-gosto, independente de qual é a maioria em questão.

É claro que o debate sobre o limite entre “brincadeira de mau-gosto” e “brincadeira saudável” não cabe sequer em um livro. Mas vale lembrar que religião é bastante importante para muita gente. Há extremistas, sim. Há gente hipócrita, gente mentirosa, gente impiedosa e até assassina. Mas há muita gente que traduz seu amor a Deus, a Cristo, a Maomé, aos santos, aos profetas ou a quem quer que seja em respeito, solidariedade, defesa da vida e da dignidade humana; e que tem o direito de se sentir ofendida ao ver suas crenças serem alvo de chacota gratuita. Enquanto não se define a fronteira entre o que é aceitável ou não, parece-me que a solução está em apenas não consumir ou divulgar o conteúdo que me soa ofensivo. Bem diferente, é claro, de sair a dar tiros em quem discorda ou de impedir legalmente que se satirize o extremismo religioso. Até ontem, não conhecia o trabalho do Charlie Hebdo e vi os quadrinhos superficialmente, de modo que não sei opinar se eram críticas bem delineadas ao fundamentalismo de alguns grupos religiosos ou provocações à crença em si. É evidente que, em qualquer caso, o ataque ao jornal permanece injustificado e merece ser classificado como desumano.

Portanto, é importante que se leve sempre em conta a diferença entre fé e seus fiéis, a fim de evitar outro grave problema proveniente tanto da ação de grupos extremistas como das satirizações da mídia: a generalização. Presto minhas condolências aos mais de 5 milhões de seguidores do islamismo que vivem na França e aos outros 1,2 bilhões do resto do mundo, que têm sua religião associada exclusivamente ao terrorismo. O mundo se levantou contra dois muçulmanos que mataram doze pessoas. Mas, frequentemente, esquece-se de se levantar contra os abusos do Estado de Israel, ou em prol do estabelecimento de um lar digno para o povo palestino. O caso é recorrente. Levanta-se, com razão, contra os “salários” exorbitantes de pastores protestantes, mas se esquece dos milhares de cristãos assassinados na Coreia do Norte e na Síria. Além, é claro, da discriminação a religiões africanas e orientais promovidas pelo fundamentalismo cristão no Brasil – para não dizerem que estou puxando sardinha. Li hoje sobre uma interessante iniciativa promovida por muçulmanos residentes na Inglaterra contra o Estado Islâmico: o uso da hashtag #NotInMyName. Não em meu nome. A marca ganhou força com o atentado e acho que é autoexplicativa.

Por tudo isso, faço coro às manifestações em defesa da liberdade de expressão. Mas também ao povo muçulmano e a todos os outros (inclusive o meu!) que tantas vezes têm sua imagem vinculada às máscaras do extremismo. #EusouCharlie. E #NãoFoiEmMeuNome.

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Maria Clara Vieira é estudante de Jornalismo