De todas as cenas que a TV apresentou do atentado contra a revista Charlie Hebdo, a mais aterrorizante é a do assassinato de um dos policiais encarregados de vigiar a redação. Ele foi alvejado algumas vezes pelo atirador, a média distância. O homem caiu em contorções e dor. Vendo que ele não estava acabado, os matadores de cartunistas partiram para cima dele. Um seguiu pela rua, outro foi direto para o policial caído, que se virou, indefeso, às mãos para cima a mostrar sua condição de indefeso. Levou um balaço de Kalashnikov na cabeça. O mundo inteiro viu o covarde assassinato.
Os assassinos estavam em rota de fuga. Deixaram muitos cartunistas famosos mortos na redação da revista. Mas continuei a esperar que a imprensa levasse alguma dignidade a alguém que foi morto por cumprir o seu dever. O Guardian (8/12), por fim, publicou as informações sobre o policial morto de forma tão covarde. Seu nome era Ahmed Merabet, tinha 40 anos e era muçulmano de origem tunisiana. Era solteiro, tinha uma namorada, oito anos de polícia e havia sido aprovado recentemente em prova para detetive.
O assassinato frio comoveu o povo e a polícia francesa. Foram as imagens mais chocantes de toda a cobertura. Seu epitáfio foi postado no Twitter por seu irmão de fé, o ativista Dyab Abou Jahjah: “Eu não sou Charlie. Sou Ahmed, o policial morto. Charlie ridicularizou minha fé e minha cultura e eu morri defendendo seu direito de fazê-lo”.
Um muçulmano foi assassinado por seus “irmãos de fé” por defender os valores básicos do mundo ocidental. Isto é mais do que escrever lindas e nobres loas à liberdade de imprensa: Ahmed viveu e morreu pela liberdade de ser ridicularizado em sua crença, seus costumes e sua origem. O povo parisiense entendeu seu sacrifício. Pilhas de mensagens de condolências e flores foram depositadas perto da janela de seu posto de trabalho, em uma delegacia policial, publicou o Guardian.
Respeito e honra
O diário português Público (11/1) postou um bom resumo biográfico do policial chacinado: “Ahmed Merabet tinha 40 anos, faria 41 a 8 de fevereiro, vivia com a sua companheira na mesma rua dos irmãos e a sua grande preocupação era cuidar da mãe, nascida na Argélia e viúva há 20 anos. ‘Era um homem que gostava de ajudar os outros, calmo, discreto’, disse a irmã Nabia”. Era “um trabalhador”, descreveu o irmão Malek, lembrando que Ahmed passou por um McDonald’s e pela empresa nacional de estradas de ferro antes de conseguir entrar na polícia.
Sua família não gostou nada da repetição da cena brutal pela mídia. São muçulmanos conscientes que não querem alimentar o ódio contra o Islã nem credenciar assassinatos. Ahmed Merabet encontrou o preço da liberdade ali no chão das ruas de Paris. Não implorou por sua vida: apenas mostrou que não estava armado. E foi exterminado como um inseto invisível. Seu corpo ficou ali inerte, enquanto as palavras do ativista ecoavam em minha cabeça. Ahmed deu sua vida por defender o direito de outros ridicularizarem sua cultura, origem e costumes. Pelo direito de fazerem piada de sua religião.
Que entendam de uma vez por todas os extremistas de todos os partidos, seitas ou religiões: o exemplo de Ahmed é a prova viva (agora assassinada), da possibilidade da convivência pacífica entre gente que pensa e vive de forma diferente. Ele apresentou a demonstração mais cabal e trágica que um homem pode prestar em sinal de respeito e honra ao seu semelhante: deu sua vida por quem não pensava como ele, e fazia piada de sua religião.
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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor