A manhã de ontem [quarta-feira, 7/1] trouxe a triste notícia do assassinato de nove jornalistas, dois policiais franceses e um porteiro, ato cometido por terroristas na redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo. A publicação já tinha sido atacada antes: a redação foi incendiada e destruída em 2011.
O periódico tem um longo histórico de provocações, incluindo a publicação de caricaturas do profeta Maomé – entre elas, a série publicada por um jornal dinamarquês em 2005. O assassinato dos funcionários da Charlie Hebdo e dos policiais designados para protegê-los ocorre pouco depois da polêmica envolvendo o lançamento do filme A Entrevista nos Estados Unidos.
No caso do filme, importantes redes de cinemas decidiram exibir um longa-metragem satírico (e bastante bobo) a respeito de dois repórteres (interpretados pelos atores James Franco e Seth Rogen) a quem a CIA pede que matem o líder norte-coreano Kim Jong-un (interpretado por Randall Park). A exibição ocorreu mesmo depois de hackers fazerem ameaças vagas e grandiosas contra a exibição do filme.
O ataque contra o Charlie Hebdo e seus profissionais é um chocante lembrete do quanto as ameaças contra artistas e jornalistas não podem ser tratadas como abstrações. E a estranha maneira de lidar com o filme A Entrevista ilustra nossa falta de preparo para lidar com tais ameaças.
Tanto A Entrevista quanto as caricaturas sobre o Islã publicadas pelo Charlie Hebdo são provocações, e não obras de arte imortais. Mas alguém precisa definir os limites do discurso numa sociedade livre, e nem sempre são aqueles com mais talento e bom gosto que decidem explorar as margens desse limite, buscando descobrir até que ponto podem esticá-lo.
Podemos criticar os méritos estéticos e artísticos das caricaturas do Charlie Hebdo ou a bobagem profunda do filme A Entrevista e, ainda assim, acreditar que esses artistas estão prestando um serviço à comunidade de que fazem parte.
A resposta na França e nos Estados Unidos às ameaças feitas contra o Charlie Hebdo e A Entrevista ilustram os conflitos em ambas as sociedades em relação aos recursos que merecem ser dedicados à liberdade de expressão.
Preço alto
Como informaram Julian Borger e Anne Penketh no jornal britânico The Guardian, depois que os editores do Charlie Hebdo decidiram publicar mais caricaturas em resposta ao incêndio da redação, um caso de invasão eletrônica e uma série de ameaças de morte, “o governo francês apelou aos editores que não dessem continuidade à publicação do material e fechou embaixadas, centros culturais e escolas em 20 países temendo represálias quando os editores decidiram ir adiante. A tropa de choque também foi enviada à redação do Charlie Hebdo para protegê-la de ataques diretos”.
Talvez os governantes franceses tenham reprovado o exercício do direito de livre expressão conforme exercido pela publicação, mas o governo defendeu o jornal mesmo assim. Ontem, dois servidores públicos morreram em defesa desse direito.
Com A Entrevista, o presidente americano, Barack Obama, viu-se diante de uma situação um pouco mais complicada: uma empresa privada – a SonyPictures – produziu uma provocação, mas seus parceiros comerciais (os cinemas que ficaram com medo de exibir o filme) dificultaram o acesso do público à provocação. “Reconheço que a Sony, como entidade particular, ficou preocupada com as possíveis consequências legais, com isso e aquilo. Melhor teria sido se tivessem falado comigo antes. Eu teria dito a eles para não criar um precedente de intimidação diante desse tipo de ataque criminoso”, disse Obama em sua entrevista coletiva de encerramento do ano.
Foi uma declaração que inadvertidamente trouxe à tona a pergunta: por que o governo não teve a iniciativa de procurar as redes de cinemas para pressioná-las e indicar que cabia a elas a responsabilidade cívica de avaliar com sobriedade as ameaças e prosseguir com a exibição do filme, tomando as devidas precauções?
São questões difíceis que envolvem governança e liberdade. Como expressar o respeito pela crença alheia sem apoiar ataques contra aqueles que ofendem essas crenças? Como levar indivíduos e empresas a demonstrar coragem, ao mesmo tempo protegendo aqueles que possam sofrer como resultado de suas ações?
Ao experimentar com os cálculos, chegamos a resultados diferentes e imprevisíveis. Nos EUA, A Entrevista se tornou inadvertidamente o anúncio de um novo modelo de produção cinematográfica, captando US$ 31 milhões em vendas online e diárias de locação. Trata-se de uma lição de coragem e de comércio. Mas na França há pelo menos 12 mortos.
Nos ataques contra o Charlie Hebdo e na invasão dos sistemas da Sony Pictures vemos o custo de se produzir arte provocadora e da proteção àqueles que a criam e distribuem. Mas não devemos permitir que essas consequências nos ceguem para o altíssimo preço que pagaríamos caso recuássemos dessa defesa: uma sociedade mais cinza, mais monótona e menor, na qual questionamentos muito mais brandos da ortodoxia são recebidos com feiura e violência.
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Alyssa Rosenberg é jornalista do Washington Post