Todos os jornais do mundo também são Charlie Hebdo. Em praças pelo mundo, entupidas de gente espontaneamente reunida para expressar a emoção e o repúdio ao bárbaro atentado, cartazes com as mesmas palavras de ordem eram empunhados. “Somos todos Charlie Hebdo”. Numa França em crise de identidade, fortemente dividida sobre as receitas para construir um futuro melhor, ontem, todas as correntes políticas e associações religiosas faziam apelos à união nacional em defesa da liberdade. “Não é hora de discutir as posições tomadas no passado, não é o momento de debate, é a hora de nos unirmos na defesa do nosso modo de vida e das nossas liberdades”, disse um emocionado Alain Touraine, deixando de lado o cartesianismo habitual de sociólogo.
Foi um choque, claro. Nunca antes uma redação fora dizimada na hora da reunião de pauta. Mas não foi exatamente uma surpresa. Os serviços de segurança anunciaram que, nas últimas semanas, vários atentados foram desmontados. Profeticamente, o próprio Charb, o diretor de redação assassinado, foi quem expressou melhor na sua última charge o sentimento de estranhamento diante do clima em Paris: “Até agora, nenhum atentado na França. Atenção. Vamos esperar até o fim de janeiro para enviar nossos votos de bom ano.”
Liberdade e diversidade
A charge é emblemática do espírito Charlie: a ironia mordaz, o traço preciso, o humor militante, a crônica política e, ainda melhor, a vontade de rir quando a tensão está alta. Como o Pasquim nos tempos áureos, o jornal satírico era indispensável a qualquer jornalista para desmontar o blá-blá-blá dos longos discursos oficiais. A irreverência de Charb, Wolinsk, Cabu – o trio no front do humor – tinha ressonância no debate cultural da França. Os três estavam em todas as mídias, rindo sempre dos chavões ideológicos. Explicaram mil vezes por que enfrentavam ameaças e polêmicas. “Não sei por que me acham anarquista, defendo a lei: na França não é proibido criticar o fanatismo, de católicos ou muçulmanos”, reafirmara recentemente Cabu.
Não existem coincidências. O atentado foi uma operação militar bem preparada, nada parecida com ataques improvisados por lobos solitários malucos ou homens-bomba mambembes. Aconteceu no dia em que a Assembleia Nacional da França debateria a continuação ou a suspensão das operações francesas contra o Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Está ligado, claro, às muitas guerras e crises no Oriente Médio, onde a França lidera, junto com os EUA, o combate aos jihadistas. Traduz a radicalização de uma parte do mundo muçulmano, às vezes falando um francês parisiense perfeito e sem sotaque. Evidencia uma espiral de morte em que o extremismo islâmico alimenta a xenofobia na Europa e é realimentado pela islamofobia da extrema-direita. Mas, acima de tudo, é um ato selvagem. Não dá para falar em motivações políticas. Torcemos todos para que a reação da França ao terror combine com a tradição do país, defensor da liberdade, da diversidade de pensamento e do savoir vivre.
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Helena Celestino, do Globo