Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Um ataque à imprensa e aos muçulmanos

O terrível, injustificável e indefensável atentado contra a redação do Charlie Hebdo não pode ser visto apenas como a ação de muçulmanos alucinados que, contrariados com alguns cartuns, resolveram mostrar suas insatisfações através de rajadas de fuzis Kalashnikov.

A teia de processos e acontecimentos que desembocou no sangrento episódio possui profundas raízes na cena política francesa.

A direita propaga, há décadas, a existência de uma suposta “questão muçulmana” a ser resolvida com a proibição da difusão de usos e costumes religiosos em território francês. O combustível essencial é a repulsa aos povos árabes e estrangeiros pobres, potencializado por um nacionalismo conservador. Estariam em perigo a cultura e o modo de vida de uma hipotética “França profunda”. Tais tendências tendem a se acentuar em contextos de crise econômica.

Nacionalismo conservador

Nacionalismo no contexto europeu – que já viveu os traumas do nazismo e do fascismo – não tem o mesmo significado que em países da periferia. Nesses últimos, o termo muitas vezes pode envolver oposição à dominação externa. Na França, o incentivo ao preconceito vem colecionando não apenas agressivos debates públicos, mas pilhas de processos na Justiça.

Os feios, sujos e malvados a serem combatidos não são mais os judeus, os comunistas ou o que vagamente se conhecia por “orientais”. O alvo desses tempos são genericamente árabes e muçulmanos de todos os matizes, os novos bárbaros. A propaganda antimuçulmana na França é uma forma de racismo.

Num país de pouco mais de 60 milhões de habitantes – em sua maioria católicos –, a comunidade muçulmana alcança 10% da população. É a segunda religião em número de fiéis. Não se trata de algo abstrato, mas o resultado de uma imigração potencializada pela vinda de enorme contingente das ex-colônias em busca de vida melhor. São os casos de Argélia, Marrocos, Tunísia e Djibuti, entre outros.

Nessas antigas possessões, os muçulmanos representam mais de 95% da população total. Tais países foram invadidos e explorados ao longo de séculos pela metrópole. Seus processos de independência, na onda de descolonização do segundo pós-Guerra, foram dramáticos e sangrentos.

Disputa maior

Embora seja inaceitável qualquer restrição à liberdade de expressão e opinião, é forçoso reconhecer que os cartuns e textos do Charlie Hebdo, com seus ataques a Maomé, estavam inseridos em uma disputa maior. Embutiam também boa dose de intolerância, mesmo que não tenha sido essa a intenção de seus autores. Mesmo assim, o atentado deve ser condenado sem mediações. Há outras formas de se externar discordâncias.

Foram assassinados, entre outros, Wolinski, Charb e Tignous, ex-chargistas do Humanité, jornal do Partido Comunista Francês. Wolinski – nascido na Tunísia – influenciou gerações de cartunistas pelo mundo, com um traço quase caligráfico e desbocadas sátiras de política, sexo e comportamento.

A estupidez dos assassinos municiará de argumentos os apóstolos do preconceito e da xenofobia, aqueles que veem no estrangeiro a matriz dos males da França.

O atentado não foi apenas contra o Charlie Hebdo. Foi também foi contra toda a população muçulmana do planeta.

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Gilberto Maringoni é cartunista, doutor em História Social pela FFLCH-USP e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC e autor, entre outros, de A Revolução Venezuelana (Editora Unesp, 2009) e Angelo Agostini: a imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal – 1864-1910 (Devir, 2011)