O massacre na Charlie Hebdo não foi somente um ataque ao semanário satírico francês, nem apenas um ataque à liberdade de expressão. Foi um atentado da intolerância em favor da intolerância. Os atiradores, identificados por ora como cidadãos franceses muçulmanos de origem árabe, gritavam que queriam vingar o profeta, numa referência às charges que satirizam Maomé, consideradas ofensivas pela maioria dos muçulmanos. O Islã proíbe a mera representação visual de Maomé.
Mas há anos charges assim são veiculadas pela mídia na Europa. A primeira grande polêmica ocorreu em setembro de 2005, quando o JyllandPosten, da Dinamarca, publicou uma série de charges de Maomé. O jornal e os cartunistas foram ameaçados. Países islâmicos boicotaram produtos dinamarqueses e congelaram relações com o país. A embaixada da Dinamarca em Beirute foi incendiada. Diante da repercussão e em defesa da liberdade de expressão, vários jornais europeus republicaram as charges.
Por que, então, esse ataque agora? E por que a Charlie Hebdo? Certamente não é coincidência que o atentado tenha ocorrido num momento de forte tensão política e social na Europa com relação à imigração islâmica.
Há décadas o tema da integração de grandes comunidades muçulmanas nas sociedades ocidentais é alvo de debate e fricção em países europeus. Alguns episódios de destaque simbolizam as dificuldades inerentes a essa questão. Em 2009, após um plebiscito, a Suíça proibiu a construção de novos minaretes.
Em 2010, o governo da França proibiu o uso de qualquer peça de vestuário que escondesse o rosto das pessoas em público, sendo acusado pelos muçulmanos de mirar especificamente o uso de burca e de véus pelas mulheres muçulmanas. Mas, talvez em parte como decorrência da crise econômica na Europa, parece haver agora um sentimento crescente, ou pelo menos cada vez mais visível, de islamofobia.
Na Alemanha, foi criado em outubro do ano passado o grupo Patriotas Europeus Contra a Islamização do Ocidente (Pegida, na sigla em alemão), que vem organizando manifestações pelo país. Na Suécia, três mesquitas foram alvo de ataques nas últimas semanas. O livro atual mais comentado na França, Soumission (Submissão), é uma ficção sobre a islamização do país num futuro próximo, que incluiria a eleição, em 2022, do primeiro presidente muçulmano.
Em vários países europeus, como esses três citados, agremiações antiimigração, de extremadireita, estão em ascensão. A líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, lidera as pesquisas de intenção de voto para a Presidência na França. O partido foi o mais votado nas eleições do ano passado para o Parlamento Europeu.
Questão relevante
O que os atiradores da Charlie Hebdo no fundo desejavam era justamente fomentar essa tensão, dificultar ao máximo a convivência pacífica entre cristãos e muçulmanos e favorecer grupos e partidos políticos europeus que defendem a intolerância, a xenofobia, o preconceito, o ódio, as sociedades fechadas, a limitação das liberdades, o autoritarismo e a violência.
Os atiradores querem transformar os outros, sejam cristãos ou muçulmanos, em intolerantes iguais a eles. Para isso, atacaram o país, a cidade onde se desenvolveram os valores iluministas que há três séculos dominam a cultura política do Ocidente.
A reação inicial na Europa sugere que os terroristas podem ter sucesso. Ontem, por exemplo, Marine Le Pen propôs um plebiscito sobre a volta da pena de morte na França. O secretáriogeral da italiana Liga Norte, Matteo Salvini, criticou o papa Francisco por ele querer dialogar com o Islã. E locais islâmicos foram atacados em diversas partes da França.
É incerto se essa onda antiislâmica renderá mais votos e se vai se traduzir em poder político. Um sinal virá em maio, com a eleição legislativa britânica. O Partido da Independência do Reino Unido (Ukip) é abertamente contra a imigração, ainda que a sua principal proposta seja retirar o país da União Europeia.
Responder a isso será um tremendo desafio para o establishment político europeu, já abalado pela grave crise econômica e o elevado desemprego que assolam a região.
Para o Brasil, essa questão não é irrelevante. O país está sujeito à influência do debate político e cultural na Europa. O avanço de partidos e ideias extremistas por lá pode logo ser importado, como já ocorreu no passado.