Como mostraram as manifestações do domingo, as maiores até hoje realizadas na França, o atentado contra o “Charlie Hebdo” suscitou um vasto movimento de solidariedade às vítimas e em defesa da liberdade de imprensa.
Na circunstância, convém situar os eventos em sua perspectiva histórica. Notese, de início, a especificidade do anticlericalismo francês. Historiadores ponderam que as sangrentas guerras de religião no país, opondo a maioria católica à minoria protestante, do século XVI ao início do século XVIII, engendraram uma ojeriza ao fanatismo religioso.
Daí derivou também o anticlericalismo que caracterizou a Revolução de 1789 e lançou as bases da República radicalmente laica institucionalizada no começo do século 20. Tumultos políticos e religiosos tornaram mais crucial a exigência da laicidade e da liberdade de imprensa. “Sem liberdade de criticar, não há elogio verdadeiro”, a frase escrita há 238 anos por Beaumarchais, grande figura do Iluminismo, espalhouse em manifestos de apoio ao “Charlie”.
Na tradição do Iluminismo, a caricatura antiautoritária e antirreligiosa reiteradamente visou símbolos católicos. Por que razão? Em boa parte, por causa do peso desproporcional do catolicismo na história francesa e do papel da Igreja na Segunda Guerra. Assim, o regime prónazista de Pétain (19401944) teve o apoio decisivo da hierarquia católica. Nesse contexto, junto com o semanário “Le Canard Enchaîné” (fundado em 1915), o “Charlie” continua a irreverência herdada do Iluminismo, galhofando de todas as religiões.
Nos últimos anos, considerando o fanatismo muçulmano como a ameaça mais perigosa, o “Charlie” tem atacado símbolos do Islã com mais frequência. Para preservar sua independência, ele, como “Le Canard”, vive unicamente das assinaturas e da venda em bancas. Nenhum dos dois semanários aceita anúncios pagos, o auxílio financeiro fornecido pelo governo aos jornais com pouca receita publicitária ou o aporte de capital de empresários liberais (que amparam “Le Monde” e “Libération”).
Desde logo, o vínculo gerado no ato da compra na banca de jornal entre o semanário e o leitor, único financiador da publicação, estabelece uma concordância de opiniões. Quem adquire o “Charlie” conhece a orientação de seus redatores, o viés de seus chargistas.
80 horas
Fiéis de qualquer religião que se sentirem ofendidos podem recorrer à Justiça, mas não precisam comprar o jornal. Islamófobos e racistas de toda casta também não, porque sabem que, vira e mexe, eles são fustigados pelos caricaturistas. Pierre Desproges, já falecido, colunista do “Charlie” no começo dos anos 1980, escreveu: “Podese rir de tudo, mas não com qualquer um”. Seus amigos do “Charlie”, por meio de sua estratégia editorial e comercial, só riem com quem compartilha suas ideias.
Todos sabiam que corriam riscos. A sede anterior do jornal foi queimada e Charb, o diretor do “Charlie”, tinha sempre ao lado um policial à paisana, que foi assassinado junto com ele. Charb havia dito não temer represálias, declarando: “Prefiro morrer de pé do que viver ajoelhado”.
Pilar da cultura meiaoito parisiense na época de Reiser (19411983), seu mais genial caricaturista, o “Charlie” aborda temas menos escandalosos, mas importantes para seus leitores de esquerda. Bernard Maris, um dos colunistas massacrados, escrevia sobre a economia contemporânea. Keynesiano respeitado, professor da Universidade de Paris, Maris era membro do conselho do banco central francês (Banque de France).
Após o ataque à redação perpetrado pelos irmãos Kouachi, um comparsa, Coulibaly, matou ao acaso, com um tiro nas costas, uma guarda de trânsito desarmada e feriu um varredor de rua. Em seguida, numa ação premeditada, ele chacinou quatro judeus. A sanha dos terroristas tomou as caricaturas como pretexto, mas incorporou a vertente antissemita que não tinha nada a ver com o “Charlie”. Seu alvo era mais amplo.
Governos muçulmanos, e até o Hizbollah e o Hamas, condenaram os atentados. Milhares de muçulmanos franceses participaram das manifestações de domingo. Com cerca de 5 milhões de seguidores, o islã é a segunda religião da França. Tal era o verdadeiro alvo dos assassinos. Num mundo islâmico desestabilizado por guerras civis e intervenções francesas e ocidentais em países francófonos do Mediterrâneo, Oriente Médio e África, os três terroristas, todos de nacionalidade francesa, buscaram o estrondo midiático e o martírio jihadista para atrair candidatos à “guerra santa” no seio da população muçulmana. É o que diz Coulibaly num vídeo divulgado após sua morte.
Talvez para ocultar as falhas de segurança na base dos atentados, membros do governo francês alegaram que a polícia resolveu a parada rapidamente, em apenas 80 horas depois do primeiro ataque. Mas ninguém na França duvida que as feridas sociais e políticas deixadas pelos atentados levarão muitos e muitos anos para cicatrizar.
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Luiz Felipe de Alencastro, professor da Escola de Economia de São Paulo FGV, é colunista do UOL News, historiador e cientista político. Nos últimos 15 anos foi professor titular da Universidade de Paris Sorbonne, da qual é professor emérito