Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Blasfêmia

Vamos combinar que não existe nada mais ofensivo do que um tiro na cabeça. Não posso imaginar uma blasfêmia maior do que espalhar os miolos de alguém com um AK-47. Porque tem gente dizendo que os cartunistas do Charlie Hebdo foram longe demais, o que equivale a dizer que mereceram o que lhes aconteceu. É o mesmo raciocínio de quem diz que mulher estuprada geralmente estava pedindo.

“Blasfêmia” quer dizer uma afronta ao sagrado. Assim, a verdadeira discussão não é sobre o que as pessoas consideram blasfêmia, mas sobre o que consideram sagrado. A descrença em qualquer divindade é uma blasfêmia perene – ou, visto de outra forma, quem não crê em nenhum deus não pode, por definição, ser um blasfemo.

Muitas vezes o que se faz em nome de uma crença ou de uma divindade é que é blasfêmia: uma ofensa a quem acha que sagrado deve ser a vida humana, o direito de pensar livremente e o direito de descrer. Não se está falando só do islamismo radical. Já houve tempo em que não acreditar no Deus da Igreja Romana era razão suficiente para ser queimado vivo. Levava mais tempo do que um tiro de AK-47.

Mudando de assunto, mas não muito. A reação do George W. Bush aos ataques ao World Trade Center foi da catatonia, quando recebeu a notícia, à hiperatividade impensada que resultou na transformação da base americana de Guantánamo em campo de concentração para “terroristas” que, na sua maioria, não tinham nada a ver com o atentado e, mais tarde, na invasão do Iraque para pegar o Saddam, que também não tinha nada a ver com o Onze de Setembro, e as suas armas de destruição em massa, que não existiam. Mas, faça-se justiça: num dos seus primeiros pronunciamentos depois dos ataques, quando já se sabia quem eram os responsáveis, Bush fez questão de alertar contra perseguições aos muçulmanos no país, que não tinham culpa da ação radical de uma minoria.

Na França pós-Sete de Janeiro, com sua imensa população muçulmana, vítima do ressentimento de boa parte da maioria francesa e da crescente reação a imigrantes em toda a Europa, vai ser difícil seguir um conselho como o do Bush. A direita inchou do Sete de Janeiro para cá, na França. Se sua pregação racista vai prevalecer contra a tradição libertária da terra dos direitos humanos, é o que se verá nas próximas eleições. Os AK-47 podem ter matado muito mais do que 17 pessoas.

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Luis Fernando Verissimo é jornalista e escritor