Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Escrachar é preciso

É fundamental escrachar Maomé. Que me perdoem os muçulmanos: não é pessoal. Porque também é preciso escrachar Jesus e Moisés. Assim como Buda ou Oxalá. É preciso escrachar, tornar óbvias, apresentar para que todos as vejam, contradições e pequenas hipocrisias. É preciso escrachar PT e PSDB, republicanos e democratas, trabalhistas e conservadores, estas duplas bipartidárias planeta afora, também elas sempre carregadas de hipocrisias. Escrachemos tanto Karl Marx quanto Friedrich Hayek. Se algum tema se torna matéria de fé para um grupo, não importa se fé laica ou religiosa, que seja escrachado.

Quase nada é mais importante, numa democracia, do que expor dogmas ao teste da provocação e a questionamentos. Absolutamente nada expõe dogmas de forma tão irreparável quanto o humor. O humor, afinal, revela o lado ridículo de cada um. Ninguém quer se mostrar ridículo em público, e todos somos um tanto ridículos. Mais ridículos são aqueles incapazes de se rirem de si mesmos. Expor o ridículo das verdades imutáveis, dos dogmas, continua sendo a missão do Charlie Hebdo. Seus editores e colaboradores a levavam com muita seriedade. O trabalho, sabiam, podia ameaçar suas vidas.

Democracias se sustentam numa única ideia: comunidades são capazes de se autogovernar através de um sistema no qual ideias estão, constantemente, expostas ao escrutínio. Todo cidadão tem o direito de meter o dedo no nariz de quem defende algo coberto de convicções. Todas as ideias podem ser levantadas, todas devem ser testadas. Não foi à toa que, para democracias existirem, foi antes preciso afastar as religiões do governo. São conceitos incompatíveis. Religiões partem do princípio de que há ideias inatacáveis. Em democracias é o contrário.

O argumento de que fazer troça da religião alheia é desrespeitoso foge ao ponto principal. É claro que é desrespeitoso, mas não importa. O direito de não respeitar ideias é a viga mestra da democracia. Quem desrespeita o outro se expõe. Ofende, cria inimizades, magoa, em casos extremos vira um pária social. Viver do exercício do direito de desrespeitar as verdades dos outros tem preço. Mas é porque há pessoas dispostas a pagar este preço que somos livres. Porque só ideias muito testadas devem sobreviver. Se uma única ideia tiver a chance de crescer sem ser refinada, nasce o totalitarismo. Se uma única ideia puder nos governar a todos sem oposição viva e presente, já não temos mais democracia.

Espaço ampliado

Quando alguém se dispõe a matar para que algo não seja dito, é este totalitarismo que deseja impor. A obrigação de uma sociedade livre é garantir a segurança de quem quiser questionar o dogma. Qualquer dogma.

Por vezes, as discussões em democracias são desagradáveis. O ambiente no debate esquenta, mexe com emoções. Somos obrigados a tolerar gente que defende noções que nos soam desumanas, estúpidas, irresponsáveis, irracionais.

Estas mesmas discussões desagradáveis, porque expõem com clareza todas as ideias, empurram as instituições para longe dos extremos. Em democracias, as religiões ficam mais moderadas. Os governos se veem obrigados a um ajuste ao centro. Experiências de radicalismo não sobrevivem muito tempo.

A internet é o maior experimento de ampliar o espaço de debate numa democracia que jamais houve. Não é sem propósito, portanto, que #JeSuisCharlie se tornou a hashtag mais popular de sua (ainda curta) história.

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Pedro Doria, do Globo