No domingo [11/1] a França, estupefata, mas radiante e entusiasmada, repentinamente se uniu. Esqueceu fissuras, venenos. Todos se abraçaram. A França, e o mundo inteiro com ela, entrou numa nova “casa”, bem arrumada, com flores e belas cortinas coloridas nas janelas. Todos os homens eram Charlie e todos os Charlie se amavam. Os imundos assassinos do Charlie Hebdo fracassaram: semearam o ódio, colheram o amor.
Poucos dias depois, onde está o amor? Como se comporta? Onde está Charlie? Em Dresden, na Alemanha, 25.000 pessoas se reuniram no Skate Park, na segunda-feira, agitando bandeiras francesas e cartazes com a inscrição “Eu sou Charlie”. Quem eram esses milhares de alemães? Adeptos do grupo islamofóbico Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente (Pegida, na sigla em alemão), que toda segunda-feira leva multidões para as ruas de Dresden e outras cidades alemãs para gritar seu ódio histérico contra o Islã.
Felizmente ontem, na mesma cidade, 35.000 pessoas se reuniram também portando cartazes com inscrições um pouco modificadas: “Eu sou Charlie, não o Pegida”. Tranquilizador? Sim, porque essa contramanifestação denunciava a ferocidade desencadeada contra o Islã.
Por outro lado estas duas manifestações na mesma cidade com a mesma palavra de ordem, mas com objetivos rigorosamente antagônicos, ilustram a ambiguidade desta onda planetária, “Je suis Charlie”. A cena é emblemática: mostra como as manifestações que ocorrem há dias são confusas, imprecisas, evasivas e, portanto, perigosas.
Vamos dirigir agora nossos olhos para a comunidade que foi golpeada logo após as mortes no Charlie Hebdo: a comunidade judaica, quando quatro membros foram abatidos por um terceiro fanático islamista, Amedy Coulibaly, num supermercado kosher de Vincennes, em Paris. Lá também se alimentava uma grande esperança de que as mortes fariam o ódio recuar. “Os judeus pagaram um pesado tributo ao terrorismo. O repentino movimento de domingo foi emocionante”, escreveu a revista judaica L’Arche. Entretanto desde domingo as agressões, as afrontas e ameaças dirigidas contra judeus se multiplicaram.
Dia da unanimidade
No momento não se observam incidentes graves, mas o poder público teve de adotar medidas exorbitantes. Bairros judeus, como a Rue des Rosiers, em Paris, parecem estar em estado de sítio. Todas as escolas judaicas estão guardadas por policiais munidos de armas pesadas. Para proteger as 717 escolas e locais de culto judaicos da França foram mobilizados 4.700 policiais e gendarmes.
Esta é a realidade: “Nossas crianças não são mais livres”, disse o rabino de Estrasburgo. “Nós as proibimos de brincar no jardim.” A imagem é forte. Os judeus da França estão ao abrigo, mas sob proteção da polícia, de soldados. As crianças ao deixarem as escolas vão para casa apavoradas. E depois que todo o mundo é Charlie a sua insegurança, em vez de diminuir, aumentou.
O primeiro-ministro francês, Manuel Vals, disse que “a França sem os judeus não é a França”. A comunidade judaica francesa é a mais numerosa da Europa. Os judeus estão totalmente inseridos no “romance nacional” francês. Presentes desde a formação do país, eles foram emancipados pela Revolução Francesa e, depois, pelo decreto Crémieux, em 1870.
Fundidos na sociedade francesa e sentindo-se franceses até a raiz dos cabelos, seus talentos (Bergson, Lévi-Strauss, Mendès France, Léon Blum, Montaigne e outras centenas ou milhares de pessoas) levaram à incandescência o gênio da França, a beleza da sua civilização – excluindo, claro, o vergonhoso episódio da ocupação nazista (1940-44), quando o marechal Pétain empreendeu uma campanha de perseguição dos judeus. Sim, Vals tem razão: “Uma França sem os judeus não seria a França.” Essa é a imagem dilacerada deste país: nas noites nas cidades e nas noites no campo, mesquitas e locais de oração muçulmanos são saqueados, demolidos, emporcalhados pelos inimigos do Islã.
Ao mesmo tempo os judeus, ainda sob o choque da carnificina no supermercado de Vincennes, são obrigados a se ocultar ou se colocar sob a proteção dos militares. Isso poucos dias depois do belo domingo da unanimidade e do amor.
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Gilles Lapouge é correspondente do Estado de S. Paulo em Paris