Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O limite da liberdade de expressão

Quando alguém começa a colocar aspas antes e depois de liberdade de expressão é porque alguma coisa está errada.

É alguma coisa parecida com a “democracia relativa”, engenhosa criação da mente castrense do general Ernesto Geisel – que equivale mais ou menos a uma quase gravidez, alguma coisa produzida por um descuido, uma coisa que deveria ter sido evitada, mas como não foi, acabou produzindo resultados que desmoronam os nossos edifícios de certezas e atrapalham a pureza do discurso.

Nada mais reacionário do que alguma coisa que pode ser feita, mas só pela metade, por exigência da moral, dos bons costumas e da hipocrisia politicamente correta, a grande praga comportamental desta primeira metade de século.

O caso do massacre do Charlie Hebdo conseguiu produzir uma verdadeira teratologia de opiniões, mais chocante do que o traço irreverente que algumas das piadas pecaminosas dos gênios metralhados pelo fundamentalismo islâmico.

Mas eles abusaram… É sempre assim que começa a relativização dos neo-iluministas que acham as piadas uma grosseria inominável e uma ofensa “às crenças do outro”, mesmo desconsiderando que na cultura do “outro” as mulheres, os homossexuais e os infiéis não têm direito sequer à existência. Decapitar infiéis, por exemplo, deve ser uma característica respeitável de sua cultura.

Cavaletes partidários

A suposta “islamofobia” (não importa que o Charlie Hebdo seja também catolicofóbico, militarofóbico, politicofóbico, ladrofóbico, autoritáriofóbico e tudo mais que termina em fóbico) do pasquim humorístico francês é um pecado tão terrível que chega a justificar os 12 assassinatos.

O psicanalista e escritor Contardo Calligaris escreveu em sua coluna semanal na Folha que na verdade o semanário humorístico atacado pelos fundamentalistas é culpado de “cretinofobia”: “Charlie Hebdo é uma publicação cretinofóbica porque acha cretino qualquer um que adira a uma crença sem a capacidade de rir dela e de si mesmo enquanto crente.”

Aqueles que não se aventuraram a trilhar o espinhoso caminho de questionar as próprias razões do fundamentalismo religioso como fonte autônoma de violência, foram buscar atenuantes para a ação do terrorismo: a primeira e suprema razão, alicerçada num antiamericanismo pueril e um pouco demente, esgota-se no próprio maniqueísmo mental; as outras razões agarraram-se a considerações estéticas sobre o mau gosto e a violência dos desenhos e das piadas, como se os fuzis kalishnikov fossem uma instância superior e definitiva de crítica de arte.

E não faltaram, claro, os saltitantes filósofos oficiais do poder nacional, adeptos do “controle social da mídia” (que agora, para despistar, chamam de regulação econômica), que usaram a irreverência sem limites do humor do Charlie Hebdo para colocar os seus cavaletes partidários no caminho da liberdade de expressão. Cada cavalete é um “mas”, que deve ser saltado pela mídia, a quem pretendem disciplinar, dizendo que a liberdade de expressão tem que ter limites. Quais? Os que eles e seus “coletivos” definirem, claro.

Qualquer limite à liberdade de expressão é o limite da lei. O que passar disso, tenha certeza, é vigarice.

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Sandro Vaia é jornalista