Deu no que era de esperar. Além das mortes parisienses, os jihadistas assassinos conseguiram uma vitória cruel sobre todo o Ocidente: “instauraram a cizânia”, como diziam na aldeia de Obelix, e entre os ocidentais ninguém se entende sobre o que é liberdade, humorismo, direitos, expressão, charge, convivência, terror – é o vale-tudo da desinteligência.
Ainda que a possibilidade de debate não fosse bloqueada pelos que se supõem detentores de direitos e liberdade absolutos, como encarnações de todos os profetas, e dos que se valem das diferenças para expelir suas iras neuróticas, o ponto de partida era por si mesmo complicador. Propôs aos raciocínios, ou ao que deles poderia sobreviver sob o jugo emocional, uma associação improvável de conceitos: terrorismo e liberdade de expressão.
Não está estabelecido que do lado de Charlie Hebdo houvesse apenas a liberdade de expressão em seu sentido mais puro e pleno. Os que assim entendem não dissolveram, até hoje, os argumentos que os contestam. Nem estes se impuseram àqueles. Nesse impasse a divergência perdeu o rumo.
O jihadismo homicida, por sua vez, não se mobilizou com a ideia posta no cerceamento à plenitude da liberdade expressão. Moveu-o um sentimento justiceiro, vingativo, amálgama de fé no divino e ódio animal. Contra o abuso que via no Charlie, mas não só. O vídeo gravado com antecedência por Amedy Coulibaly, o assassino do mercado judeu, foi explícito: eles iriam vingar o seu profeta, as humilhações impostas pelo tratamento ocidental aos muçulmanos e, precisão dele, os palestinos.
Inadmissão da divergência
A ação dos assassinos fundamentalistas foi, portanto, de sentido muito mais amplo do que o ataque ao Charlie. Isso mesmo se poderia entender, antes ainda de ser encontrado o vídeo, pelo ataque e sequestro feitos por Coulibaly no mercado judeu. E pelo assassinato de um policial, que cometeu ainda antes da invasão do Charlie. Se, porém, os seus foram atos diversionistas, como em geral os interpretaram, o vídeo é enfático quanto ao sentido largo da ação terrorista.
As análises teriam ganho se tratassem os diferentes em separado, cada qual voltado para o tipo de problema que representa.
No Brasil distante dos acontecimentos, e menos do que secundário em suas conceituações, as divergências foram infiltradas por agressividades que não se mostraram nem nos centros europeus da discussão obsessiva. Não por acaso, claro. Oportunidade para afirmações assim: “Os jovens países [da África] até deveriam agradecer aos ‘opressores’ [europeus] por coisas que nunca tinham visto.” Pois é, ainda um defensor do colonialismo genocida na África, e entre os que publicam coisas na Folha como gente da casa.
Em grande parte dos escritos e entrevistas de brasileiros sobre o ataque ao Charlie, viu-se a mesma inadmissão de opiniões divergentes criticada pelos autores nos jihadistas extremados. Não é a única semelhança.
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Janio de Freitas é colunista da Folha de S.Paulo