Mais uma vez, mais de dez mil pessoas saíram às ruas em Dresden, capital da Saxônia, sob o comando do movimento Pegida, para protestar contra o que elas chamam de “islamização” do “ocidente” (é bom lembrar que a América Latina também não é considerada como ocidental). Embora caricaturistas franceses tenham se distanciado do movimento e da sua tentativa de instrumentalizar o atentado a Charlie Hebdo (ver aqui), os islamofóbicos se sentem como se as suas teses tivessem sido confirmadas com o episódio.
Alemães de Colônia, Berlim e Stuttgart e outras cidades do país também saíram às ruas, não por causa dos muçulmanos, mas para protestar contra os saxões e os seus apoiadores. Além de políticos do primeiro escalão terem se pronunciado contra o Pegida, a própria chanceler Angela Merkel não se limitou a criticar. Ela ainda afirmou que o Islã faz parte da Alemanha como qualquer outra religião. Mas, afinal de contas, o que está por trás destas manifestações? Seria o presente do passado se fazendo sentir de novo na Alemanha? Um conflito entre o ocidente e o Islã?
De fato, há um oriente envolvido nesta questão, mas não aquele que o mundo conhece, e sim o que a Alemanha passou a conhecer depois da queda do Muro de Berlim. Somam-se a isto políticos de direita que – ao invés de buscar integrar a “nova” Alemanha na tolerância europeia ocidental, aprendida tão dolorosamente – utilizam os “recém-chegados” como terreno fértil para suas mobilizações populistas. Tais políticos encontram na mídia, como um terceiro elemento nesta corrente, um aliado oportunista que por meio da islamofobia pode dar um rosto ao imigrante, esta figura desconhecida pelos que viviam atrás da cortina de ferro.
O oriente alemão
O movimento islamofóbico que tem reunido mais de dez mil pessoas em suas manifestações chama-se Pegida, o que significa “Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente”. Ele nasceu e praticamente se restringe à Saxônia, um dos cinco estados que fizeram parte da ex-Alemanha Oriental de 1949 a 1990 e hoje compõem da República Federativa da Alemanha (Bundesrepublik Deutschland). Esta região se caracteriza por ser mais pobre do que a parte ocidental: não só a renda é menor, como as taxas de desemprego são maiores. Por ser menos industrializada e economicamente mais fraca, muitos alemães orientais migram para a parte ocidental, o que está levando a região a ser povoada por velhos, mulheres com filhos e jovens sem formação e/ou perspectiva.
Isto faz com que a Alemanha oriental seja especialmente afetada pela redução do Estado do bem-estar social (em inglês, Welfare State ou em alemão, Sozialstaat). Esta tem sido apontada como uma das principais causas para o sucesso de partidos de direita populista não só na Alemanha, como também em outros países, como a Inglaterra e o seu UKIP.
O oriente alemão não tem só um outro presente, como também um outro passado. Depois da Segunda Guerra Mundial, passou a ser um estado-satélite da União Soviética. Isto significa, entre outras coisas, que esta região não passou pelo processo de desnazificação (Entnazifizierung) ao qual os países aliados, sobretudo os Estados Unidos, submeteram a parte ocidental.
Os alemães orientais também não viveram o milagre econômico dos anos 50, com o qual os alemães ocidentais aprenderam a associar democracia com sucesso material. Com a queda do comunismo e a insegurança social trazida pela redução do Estado social, os casos de xenofobia e crimes motivados por esta floresceram na região, como, por exemplo, o assassinato do trabalhador angolano Amadeu Antonio Kiowa em Brandenburgo em 1990 e os constantes ataques incendiários aos abrigos de refugiados em Rostock, no estado de Mecklenburg-Vorpommern.
Hoje em dia, os adeptos da Pegida utilizam o slogan da Revolução de 1989: “Nós somos um povo”, não com um objetivo de integrar e unir, como na época da queda do muro, mas sim, para excluir os alemães de descendência estrangeira, sobretudo muçulmanos. Daí a força simbólica da declaração de Merkel, de que o Islã faz parte da Alemanha.
Outro aspecto que marca a história da Alemanha oriental é o número extremamente baixo de imigrantes e de alemães de descendência estrangeira. Além desta ter estado isolada do resto do mundo por um muro, nos anos 1960, os alemães (ocidentais) iniciaram uma política de imigração para atrair mão-de-obra para o país, sobretudo do sul da Europa. Portugueses, espanhóis, gregos e turcos, entre outros, propiciaram à Alemanha o crescimento econômico que a fez o país mais rico e locomotiva da Europa. Hoje em dia, segundo o censo de 2011, 97% dos alemães com um histórico de migração vivem na Alemanha ocidental (é importante lembrar que crianças nascidas e crescidas na Alemanha não têm automaticamente a cidadania alemã se os pais forem estrangeiros).
A minoria muçulmana
Hoje, o único daqueles países que não se tornou membro à União Europeia é também o país de origem dos pais e dos avós do maior grupo dos chamados “alemães com um histórico de migração”. Praticamente a totalidade destes alemães de descendência turca é de ocidentais.
Os descendentes de turcos representam, de fato, o maior grupo de pessoas com um histórico de migração no país, mas não a maioria. Segundo o Censo de 2011, de todas as pessoas que vivem na Alemanha e tem um histórico de migração, os turcos só correspondem a 18%, seguidos dos poloneses (13%) e dos advindos da Federação Russa (9%). Segundo um estudo do Ministério do Interior de 2009, estima-se que em toda a Alemanha, um país de mais de 80 milhões de habitantes, o número de muçulmanos esteja entre 3,8 e 4,3 milhões. Estes dados se referem à Alemanha como um todo. Considerando-se somente a Alemanha Oriental, o número total de estrangeiros e de alemães de ascendência estrangeira não chega a 4% e a maior parte vem de outros países que faziam parte do bloco comunista.
Saxônia: o oriente alemão extremo
Como se explica o medo e o ódio dos saxões de e por um grupo que eles não conhecem ou só conhecem pela televisão? Dos habitantes da Saxônia, menos de 1% é muçulmano. Talvez seja exatamente esta uma das razões. Levantamentos do Verfassungsschutz (o “NSA” alemão) mostram que há uma correlação negativa entre o número de estrangeiros e o de crimes motivados por racismo. Quanto mais estrangeiros em uma região, menos crimes provocados por membros da extrema direita. Por este motivo, os estados da parte oriental lideram as estatísticas dos chamados hate crimes por número de habitantes, embora menos de 4% dos migrantes e/ou seus descendentes vivam nesta parte do país. Mas falta de contato não é a única causa.
A Saxônia, berço da Pegida, tem um status especial, mesmo dentro da Alemanha Oriental: é chamado o “estado no escuro” porque, ao contrário da Turíngia, de Mecklenburg-Vorpommern, Sachsen-Anhant, Brandemburgo e Berlim, não recebia o sinal da televisão alemã ocidental, vista ilegalmente por muitos moradores da região na época da Guerra Fria. Eles não acompanharam nem “de longe” o desenvolvimento da Alemanha depois do nazismo. Não se deve esquecer também que Dresden, a capital deste estado onde a Pegida desfila, foi completamente destruída pelos aliados durante a Segunda Guerra Mundial.
Muitos saxões não conseguem compreender até hoje porque o neurologista alemão de descendência turca ganha mais do que a vendedora de Dresden. Muitos não conseguem nem mesmo compreender como alguém de descendência turca pode ser alemão. É neste contexto que militantes da Pegida reclamam que nas casas para refugiados há máquinas coletivas de lavar roupa: “Por que eles têm e eu não?” (FAZ, 6 de janeiro de 2015).
Viver na Saxônia como (visivelmente) estrangeiro significa entrar em uma loja e ser seguido o tempo todo pelo segurança, ter atendimento médico recusado, ser alvo de gritos da garçonete no restaurante ao fazer o pedido. A recepção de um estudante estrangeiro na Universidade de Leipzig frequentemente começa com duas perguntas: De onde você vem e quando vai embora. Ser negro, então, significa, no melhor dos casos, ser tocado na pele (“é quente?”) ou nos cabelos (Algumas destas experiências foram descritas recentemente em um depoimento de um afro-alemão que vive em Leipzig ao jornal Süddeutsche Zeitung). Isto não acontece nem na metrópole Londres nem na pequena cidade de Portsmouth, na Inglaterra, apesar do UKIP. Também não ocorre em Berlim ou em Colônia.
Na Saxônia, atentados contra a imprensa como o assassinato dos cartunistas franceses de Charlie Hebdo geram comoção, mas quem participa de manifestações contra marchas neonazistas é processado por impedir a liberdade de expressão. Por este motivo, a justiça saxônica está processando o governador Bodo Ramelow e o pastor Lothar König, ambos da Turíngia.
A Saxônia é governada pela ala direita da União Crista Democrática (CDU) de Angela Merkel, já de direita. Além disso, pertence juntamente com o também oriental Mecklenburg-Vorpommern aos únicos do país em que os neonazistas do partido NPD conseguiram se tornar deputados estaduais.
A Saxônia também já mostrou que o Oriente, de fato, pode ser um perigo. Não o Médio, mas um muito mais próximo do que se imagina. Foi em Dresden que em 2009 uma mulher grávida egípcia foi assassinada em uma sala do Tribunal de Justiça estadual, na frente do juiz, do marido e do filho de três anos, com 18 facadas, por um alemão de descendência russa. O juiz ainda conseguiu chamar um policial, que ao chegar atirou no marido da vítima, também egípcio, que tentava proteger a esposa, e não no agressor. Marwa El-Sherbini vivia na Alemanha acompanhando seu marido, um geneticista que fazia doutorado no Instituto Max Planck.
De 2000 a 2006, um trio de neonazistas oriundo de Jena, na Turíngia, fundou um grupo terrorista chamado NSU (Nationalsozialistische Untergrund) e depois de uma série de atentados saiu viajando pelo país para matar alemães de descendência estrangeira, sempre voltando para abrigar-se em cidades saxônicas. O grupo deixou um saldo de 10 mortos.
Em 2011, dois dos seus integrantes se mataram ao serem perseguidos pela polícia depois de um assalto. Somente neste momento, depois de mais de dez anos de atuação, foram “descobertos”. O caso motivou comissões parlamentares de inquérito tanto nas Câmaras de Deputados dos estados da Turíngia e da Saxônia quanto da Alemanha (parlamento) devido às dúvidas quanto a um possível acobertamento dos crimes pelos serviços secretos estaduais. Enquanto o parlamento da Turíngia investigou o caso minuciosamente e publicou os relatórios da CPI, o da Saxônia ainda não apresentou nenhum resultado. Curiosamente, um dos membros da comissão saxônica é um neonazista do NPD.
O papel da mídia
A mídia alemã, que hoje condena Pegida como extremista, juntamente com a maior parte da elite política do país, teve um papel fundamental na construção da imagem do muçulmano da qual este movimento alemão oriental se utiliza.
Por um lado, foi porta-voz de políticos populistas e ofereceu uma tribuna para polêmicas como a em torno das declarações de Thilo Sarrazin, um político local de Berlim que virou autor de best-seller com um livro contra imigrantes, sobretudo muçulmanos. Um dos seus leitores e defensores foi o atual presidente alemão Joachim Gauck, do estado oriental de Mecklenburg-Vorpomern, que também criticou o ex-presidente Christian Wulff quando este disse em 2010 o mesmo que Merkel há poucos dias: O Islã faz parte da Alemanha. Na sua atual função de presidente, Gauck critica Pegida, mas apóia a sua reivindicação de controlar mais rigorosamente os pedidos de asilo.
Políticos como Sarrazin e Gauck geram pautas que se enquadram no chamado “jornalismo declaratório”: o político da União Social Cristã (CSU) dá uma entrevista com palavras de ordem contra imigrantes, o do Partido Verde rebate no dia seguinte e assim já se tem assunto para pelo menos um fim de semana. Nestes casos, a mídia funciona como uma espécie de “recipiente”, que se deixa encher com tais conteúdos.
No entanto, a mídia também construiu ativamente a representação do imigrante/muçulmano. Primeiro, transformou o imigrante em turco e com isso em muçulmano. Praticamente toda matéria sobre imigração é ilustrada com fotos de mulheres de véu. Assim, todo brasileiro, mexicano, espanhol ou português passou a ser turco/muçulmano.
O alemão ocidental, que foi para a escola juntamente com os alemães filhos dos portugueses, espanhóis, gregos e turcos, que sempre tirou férias nas praias do Algarve, de Mallorca, de Creta ou da Antália, pode até saber diferenciar. Resta saber se os que estavam do outro lado do muro, atrás de uma cortina de ferro, que nem sequer sabiam o que é uma manga, têm a mesma competência intercultural (muito diferente da oferta de produtos frescos de qualquer supermercado da parte ocidental, na parte oriental, antes da queda do muro, praticamente só havia maçã e repolho).
Além disso, os meios de comunicação trataram de associar o turco/imigrante/muçulmano com desemprego, benefícios sociais fornecidos pelo Estado, criminalidade etc. Para verificar isto, basta buscar fotos de Kopftuch (véu) em algum site de jornal, revista ou emissora de TV do país. A maior parte das associações na lista de resultados será com temas negativos como desemprego, criminalidade, misoginia e assim por diante.
A correlação temática com o populismo de direita é clara: uma das justificativas da Pegida é a de que os “estrangeiros”, muitos deles alemães com um histórico de imigração que pertencem a este país há mais tempo do que os saxões, abusam dos serviços sociais oferecidos pelo Estado. Isto apesar de os alemães orientais serem os que mais dependem do sistema social: uma em quatro crianças vive em um lar dependente de ajuda social nesta região (24% contra 13% na parte ocidental). A taxa de desemprego na Alemanha Oriental em dezembro de 2014 foi de 12%, na ocidental, 7%.
Segundo o movimento saxônico, a Alemanha precisa ser mais rigorosa com os pedidos de asilo. A Alemanha recebe o maior número absolutode refugiados (sendo também o país com o maior número de habitantes), mas é apenas o sétimo país da União Europeia na lista dos que mais recebem refugiados por número de habitantes, segundo dados da Eurostat de 2014. Tanto a França quanto a Suécia, por exemplo, recebem mais refugiados.
Para entender a islamofobia alemã, é preciso primeiro ter a consciência de que, nos olhos do Pegida e seus aliados, o que não é espelho é muçulmano, e com isso um perigo a ser combatido. É preciso ainda ter em mente que o populismo de direita tem sido um problema não só na Alemanha, mas também nos demais países europeus que têm uma tradição de um Estado social forte e que optaram por reduzí-lo nas últimas décadas. No entanto, a islamofobia alemã tem mais do que isso: ela encontra no oriente do próprio país o habitat perfeito.
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Liriam Sponholz é jornalista, professora universitária, doutora e pós-doutora