Tuesday, 05 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Piada pronta para uma discussão muito séria

Foi uma cena típica de piada pronta: um casal de professores desconfia que sua residência foi invadida e chama a polícia, que se depara com a plantação de maconha no jardim da casa, numa rua bucólica do Humaitá, Zona Sul do Rio. O homem, de 57 anos, doutor em biofísica e professor na UFRJ, assume a responsabilidade pelo cultivo e, embora argumente que a droga era utilizada para consumo doméstico, é autuado por tráfico.

O fato se prestou a muitas gozações na internet, mas nenhum jornal carioca – nem mesmo o popularesco Meia Hora – o explorou em todo o seu potencial de nonsense. Porém, passado o espanto, e animado por ocorrência semelhante naquela mesma noite, quando a polícia atendeu a denúncia anônima e prendeu um jovem morador do Alto da Boa Vista que também cultivava maconha em casa, O Globo demonstrou que, por trás da piada, estava uma situação que não tinha graça nenhuma e abriu uma página inteira para reiterar a necessidade do debate sobre descriminalização e legalização das drogas.

As boas intenções, entretanto, esbarram na velha dicotomia sintetizada na pergunta escolhida para título da edição de papel de sábado (31/1): “Usuário ou traficante?” A diferença existe, evidentemente, e é notável que os dois tenham sido autuados por tráfico apesar da ausência de outros elementos indicadores do delito, como balanças de precisão, material para embalar e grande quantidade de dinheiro vivo.

Sublinhar essa diferença importa para a defesa dos acusados, à luz da legislação em vigor, que é em si contraditória: como diz a reportagem – o título na edição online é diferente, mas o texto é o mesmo (ver aqui) –, quem cultiva essas plantas em pequena quantidade, para consumo pessoal, estaria sujeito a medidas brandas, como prestação de serviços comunitários, advertência sobre o efeito das drogas e comparecimento a cursos educativos – e aqui é impossível não imaginar a cena constrangedora de um doutor em biofísica a receber aulas sobre esse tema; ao mesmo tempo, outro artigo da lei pode dar ao cultivo ilegal a interpretação de que se trata de uma atividade voltada para o tráfico, punida com prisão e multa.

Contra a distinção de classe

Porém, insistir na oposição entre usuário e traficante ajuda a cristalizar uma distinção de classe que desvia o foco do problema principal, como vários juristas vêm apontando insistentemente há muito tempo. Nilo Batista foi quem talvez mais bem tenha esclarecido as consequências dessa distinção, aplicável a todo tipo de delito, não apenas ao do consumo/tráfico de drogas: num artigo publicado em 1997 (“A violência do Estado e os aparelhos policiais”, revista Discursos Sediciosos, ed. Freitas Bastos), opôs – “caricaturalmente”, nas palavras dele – essas duas espécies de tipos ideais classificados como “o bom delinquente e o infrator perigoso” (grifos no original).

“Esse maniqueísmo penal, que por pouco não representa a coexistência de dois sistemas penais distintos, leva a respostas e padrões distintos para os dois clientes distintos. O bom delinquente é um consumidor, que deve ser preservado enquanto consumidor, evitando-se seu ingresso na penitenciária e o chamado ‘contágio prisional’; o argumento econômico (custo do preso) funciona para ele. (…) Quanto ao infrator perigoso, só o produto do crime o converte eventualmente em consumidor, porém suas compras logo estarão na primeira página, no dia de sua prisão ou numa reportagem sobre as antenas parabólicas da favela, e constituem corpo de delito de uma espécie de infração existencial, de um inconformismo perante a miséria que clama por drástica repressão. Para o infrator perigoso (…) o argumento econômico cede ao argumento da segurança, e recomenda-se a maior permanência possível sob ‘contágio prisional’; é ele o verdadeiro objeto do sistema penal, e os medos que a partir de sua figura são produzidos permitem a expansão do sistema e a policialização das relações sociais”.

Destaquei a parte final da citação para sublinhar a extensão do alcance dessa lógica, que desestabiliza quem se supõe confortavelmente instalado em sua condição de classe: se, de fato, a clientela do sistema penal é predominantemente o marginalizado, a engrenagem que o movimenta submete a todos.

Ampliar o alcance

Em “Política criminal com derramamento de sangue”, no qual traça um histórico da legislação brasileira sobre drogas – publicado originalmente em 1998, e que portanto não alcança a lei atual, de 2006 –, Nilo ironiza o “delegado de polícia devotado” capaz de instaurar inquérito “contra Charles Baudelaire, Aldous Huxley, Jean Cocteau e Walter Benjamin numa única estante de livraria” e assinala as consequências da ilegalidade do comércio de drogas, responsável por sustentar essa “máquina gigantesca” que articula a manutenção de um lucrativo sistema de repressão à realimentação de “todos os mitos que, a partir da droga, desatam pânicos sociais e instam por repressão penal”.

Seria útil que reportagens dedicadas a discutir a legislação sobre drogas atentassem para esses argumentos. Seria uma inestimável contribuição para ampliar o alcance do tratamento jornalístico dessa questão.

Dois outros aspectos sobressaem na cobertura dos casos aqui citados. Primeiro: salvo na notícia inicial do Globo (30/1), o nome dos acusados não foi citado – nem neste nem em qualquer outro jornal carioca –, o que seria uma saudável medida a ser aplicada a suspeitos de crimes e infrações de modo geral, como ocorre na imprensa de outros países. Segundo: não deixa de ser curioso que O Globo afirme a retomada da discussão sobre o tema – o subtítulo da reportagem em papel opta pelo trocadilho óbvio com o verbo “acender” – mas não tenha aberto o texto a comentários na edição online.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)