Crises são ocasiões propícias para fixar sentidos e determinar narrativas. É em cenários conturbados – quando imperam as incertezas –, que as pessoas buscam referências confiáveis para nelas se apegar e esculpir noções mais concretas de realidade. Ao menos pretensamente mais concretas. Narrativas são feitas de imaterialidades, de palavras cujos sentidos vão se cristalizando com seus usos e conveniências. Ora a crise aponta para o caos e a impossibilidade de romper círculos de autodestruição, ora para a necessidade de realinhar forças e forjar novos caminhos. Os episódios que assistimos nas últimas semanas no Brasil ilustram essa condição na medida em que se percebe a disputa por sentidos para um país. Em outras palavras: buscamos uma narrativa que vá nos confortar diante da troca de tiros verbais, e que nos ofereça recursos para entender o que está acontecendo.
Essas narrativas surgem nas ruas, palácios, mídia e na efervescente arena das redes sociais da internet. Frente a um eleitorado altamente polarizado desde as eleições de outubro, facções do meio político se apressam para atrair a atenção do público, na clara tentativa de fazer prevalecer um ponto de vista, explicações para o caos. Mas não são apenas partidos da situação e oposição que disputam esses corações e mentes. Outros atores também contribuem para a fixação dessas narrativas, mesmo que eles neguem tais movimentos, como é caso de algumas empresas jornalísticas que insistem em ocultar a dimensão política de sua presença no cenário nacional. A noção de realidade dos sujeitos contemporâneos é moldada muito fortemente a partir da exposição das pessoas ao noticiário, às análises conjunturais e tomadas de posição expressas na mídia.
Minha questão aqui é: como algumas narrativas nacionais estão sendo apresentadas nos principais jornais?
Embora a presença dos diários venha sofrendo forte erosão nas últimas décadas, não vamos ignorar sua resistente força no imaginário nacional. Eles ainda são os meios de comunicação com maior credibilidade no mercado, aponta a Pesquisa Brasileira de Mídia, estado da arte mais atual e mais bem acabado do setor. Por essa razão e entendendo que as primeiras páginas são as vitrines mais contudentes de disputa das narrativas cotidianas, recorri às capas de alguns dos diários mais importantes para entrever que histórias estão sendo urdidas em meio aos tremores de terra.
Tomei como base de comparação as edições de sábado, domingo e segunda, dias 14, 15 e 16 de março. Justamente as edições que reportaram manifestações convocadas por centrais sindicais e movimentos sociais em apoio ao governo Dilma Rousseff, na sexta-feira, 13, e os organizados por grupos contrários, no domingo, 15. Não se tratou aqui de medir que lado levou mais pessoas às ruas, suas motivações ou bandeiras. Meu objetivo foi apenas com base nas primeiras páginas de dez dos principais jornais brasileiros evidenciar as costuras narrativas de suas manchetes. É claro que fatos dos próximos dias podem alterar os rumos das histórias aqui mostradas. Temos à frente esboços de desenhos apressados…
Fechando o cerco
Basta justapor manchetes e chamadas de capa de dez jornais brasileiros para perceber o fortalecimento de uma narrativa de alarme social e descontentamento político generalizado. Se colocadas na sequência das edições de sábado a segunda, são nítidos dois comportamentos: o comedimento ao tratar das manifestações favoráveis ao governo e um tom celebrativo indisfarçável nos protestos de domingo. Como se houvesse alguma preocupação com os atos da sexta-feira, 13, e uma adesão desprendida aos movimentos de domingo. É óbvio que os números são bastante distantes entre os dias, e que foi mais expressivo o recado do dia 15. No entanto, não se pode deixar de lembrar que alguns jornais – como a Folha de S.Paulo e Estado de Minas – chegaram a convocar seus leitores para os atos de domingo. É legítimo? Sim, desde que fique bem claro para a audiência a posição do veículo, controlado por grupos privados e constituído por seus interesses específicos. Posar de imparcial é fácil. Sustentar essa postura e oferecer coberturas equilibradas e justas exige mais da redação e de sua cúpula.
As primeiras páginas de Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, O Globo, Estado de Minas, Correio Braziliense, A Tarde, O Liberal, Gazeta do Povo, Diário Catarinense e Zero Hora ajudam a compor um mosaico onde prevalece a construção de uma narrativa da insatisfação geral. Uma narrativa de intolerância centralizada no Poder Executivo, de urgentes reformas e de desidratação do apoio popular à presidente em particular. Quem acompanhou a cobertura pelas emissoras de TV viu diversas vezes cartazes e faixas extremistas, pedindo intervenção militar, por exemplo. Nenhum dos jornais analisados destacou essa tese. Isto é, não aderiram a um discurso flagrantemente golpista. Salientaram o tom firme, mas pacífico das manifestações. Generalizaram, reforçando a hipérbole de que o brasileiro teria ido às ruas. Do ponto de vista numérico, sabe-se que apenas uma parcela fez isso. Dois milhões é muita gente, mas não chega a 1% dos habitantes, o que impediria qualquer exagero. Mas é próprio dos jornais criar narrativas totalizantes, como se pudessem reduzir a realidade a manchetes de uma linha.
A seguir, apresentamos manchetes e chamadas que evidenciam a configuração de uma narrativa de urgência nacional:
A Tarde (BA)
Sábado, 14: “Pela Petrobras e por Dilma” (foto central estampando faixa com rosto estilizado da presidente Dilma Rousseff com os dizeres “Em defesa da democracia! Fica Dilma!”)
> Tom comedido, não aderente ao governo
Domingo, 15: “O poder” (chamada para artigo assinado por Renato Simões, criticando a “roubalheira” na Petrobras, exortando aguardar “uma solução justa, pois o descalabro não pode vicejar numa democracia”)
> Tom firme, mas restrito a uma opinião e não contagia a cobertura noticiosa
Segunda, 16: “Manifestantes pedem destituição de Dilma” (manchete com três fotos ocupando quase toda a página, ilustrando momentos dos protestos. No lado esquerdo da página, box com fundo negro traz outras chamadas, inclusive de artigos, como o de Carlos Alberto Di Franco: “A presidente só tem uma saída: a renúncia”)
> Tom mais agressivo, trazendo à tona a tese de impeachment
Correio Braziliense (DF)
Sábado, 14: “Ato pró-Dilma paralisa a rodoviária em Brasília” (não se trata da manchete principal do jornal. Mas ao lado da principal, “Dólar vai a R$ 3,25, maior valor desde abril de 2003”, dá o tom alarmante)
> Tom crítico, vinculando o ato a eventuais prejuízos da população
Domingo, 15: “Governo e oposição de olho nos protestos” (chamada no rodapé da página, do lado direito. Abaixo, “Confiança no país entra em colapso”)
> Tom comedido, tendendo à crítica
Segunda, 16: “A voz das ruas pelo Brasil, contra Dilma” (manchete principal com apoio de quatro fotos que ocupam quase toda a página, estampando os protestos em Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. O texto de apoio afirma que “os brasileiros deram ontem uma mostra eloquente da indignação contra o governo Dilma Rousseff…”)
> Tom crítico, com endereçamento para a presidente da república
Diário Catarinense (SC)
Sábado, 14: “Em defesa de Dilma” (Segunda manchete com apoio de foto do protesto da CUT e outros movimentos em Florianópolis)
> Tom ambíguo: entre o comedido e o adesista
Domingo, 15: “O que explica a queda na popularidade de Dilma” (manchete principal; abaixo outra que – em conjunto – ajuda a refazer o sentido da primeira: “O melhor futuro para os filhos”)
> Tom crítico, reforçado pela segunda manchete
Segunda, 16: “Nas ruas contra Dilma” (manchete de rodapé, soterrada pela chamada “Dor”, alusiva ao maior desastre rodoviário ocorrido no estado e que vitimou 51 pessoas no sábado. Uma foto com uma mulher chorando sobre um caixão ocupa quase toda a capa)
> Tom aparentemente neutro, reduzido pela força da manchete principal, sem conotação política
Estado de Minas (MG)
Sábado, 14: “Segurança de Copa para os protestos” (manchete principal com foto mostrando fachada de banco coberta de tapumes de madeira no centro de Belo Horizonte)
> Tom de alarme social
Domingo, 15: “Por que tanta insatisfação depois das eleições” (principalmente manchete acima de uma chamada convocatória: “Hoje é dia de protesto contra o governo”)
> Tom didático, mas abertamente convocatório
Segunda, 16:“O grito dos indignados” (manchete principal com foto vertical que ocupa quase toda a página. Na foto, fechada em manifestantes com um cartaz onde se lê “Fora Dilma. Basta! Chega de mentiras”)
> Tom crítico ao governo
Folha de S.Paulo (SP)
Sábado, 14: “Atos criticam governo, mas defendem Dilma” (manchete principal com apoio de três fotos e mapa do Brasil indicando onde aconteceram as manifestações)
> Tom comedido, buscando equilíbrio
Domingo, 15: “Para 63% do ato de sexta, Dilma “sabia”” e “Grupos anti-governo se distanciam” (chamadas no alto da primeira página, embora não sendo as principais manchetes. As chamadas foram colocadas sobre fundos vermelho e azul, com setas indicando direções opostas. No centro, uma foto de militantes do Movimento Brasil Livre colam cartazes em poste no centro de São Paulo)
> Tom ambíguo
Segunda, 16:“’Fora Dilma’ reúne 210 mil em São Paulo e multidões pelo país” – Manchete principal com quatro fotos, mostrando os movimentos em São Paulo, Salvador e Brasília. Na chamada, linha de apoio afirma que “ato político é o maior registrado na capital paulista após diretas-já”
> Tom distanciado, com tendência ao crítico
Gazeta do Povo (PR)
Sábado, 14: “Em defesa da Petrobras e pela reforma política” (legenda de foto no canto direito inferior da página. A foto traz manifestante envolta a uma faixa que estampa o rosto da presidente)
> Tom distanciado
Domingo, 15: “Centro da crise política extrapola Dilma e se estende aos três poderes” (manchete principal)
> Tom complexifica a situação, ampliando a análise para além dos clamores populares, raro nos jornais
Segunda, 16:“Megaprotesto reúne multidões pelo país em duro recado ao governo” (manchete principal com três fotos amplas)
> Tom preocupado, ainda não adesista à tese do impeachment
O Estado de S.Paulo (SP)
Sábado, 14: “CUT, UNE e MST fazem atos pró-Dilma em 24 estados” (manchete principal com apoio de foto com rosto estilizado da presidente e pedido de “fica!”. Ao lado, chamada “Dólar dispara e vai a R$ 3,26, a maior cotação em 12 anos”
> Tom neutro, com tendência ao crítico pelo contraste da outra manchete
Domingo, 15: “Ato contra Dilma coincide com pessimismo econômico” (manchete principal com linha fina alarmante: “Medo do desemprego e da inflação cresceu; governo cria gabinete de crise para acompanhar protestos”)
> Tom crítico, de responsabilização do governo
Segunda, 16: “Manifestação contra Dilma é a maior desde Diretas-Já” (manchete principal com duas fotos: uma ampla mostrando a marcha na avenida Paulistra em frente ao MASP e no destaque foto com crianças com caras-pintadas ao lado de um pelotão de isolamento da Polícia)
> Tom alarmista
O Globo (RJ)
Sábado, 14: “Manifestantes pró-Dilma vão às ruas em 24 estados” (manchete com fotos, acima da chamada “Dólar sobe a R$ 3,25, alta de 22% ao ano”)
> Tom ambíguo, com tendência ao crítico
Domingo, 15: “Políticos investigados multiplicaram bens” (manchete alusiva ao “escândalo da Petrobras”. No canto direito inferior, chamada “Protestos previstos em 20 estados e DF”
> Tom distanciado
Segunda, 16: “A volta dos protestos: Democracia tem novo 15 de março” (manchete principal com apoio de quatro fotos e três chamadas: “Em todo o país, 2 milhões vão às ruas contra o governo”, “Surpreendido, Planalto reage com promessas”, “Panelaço nas cidades vira resposta à fala de ministros”
> Tom alegórico, tendendo à adesão aos motivos do protesto
O Liberal (PA)
Sábado, 14: “Antidilma: Organização espera 20 mil nos protestos na Capital” – chamada discreta no lado direito da página, ainda sobre a dobra.
> Tom comedido
Domingo, 15: “Brasileiro vai às ruas protestar” (não se trata da primeira manchete, mas a que está no topo da página. A expressão “vai às ruas” está grafada em vermelho, diferente do restante da frase
> Tom generalizador
Segunda, 16: “Dois milhões contra Dilma” (manchete principal com fotos de São Paulo e Belém)
> Tom crítico, com endereçamento ao Poder Executivo
Zero Hora (RS)
Sábado, 14: “Em dia de manifestações no país, dólar fecha a R$ 3,25” (foto da manifestação de sexta, e chamadas dizendo que o protesto de amanhã “pedirá o impeachment da presidente”
> Tom acusatório, vinculando os atos a um revés econômico
Domingo, 15: “Desgaste de Dilma turbina os protestos”
> Tom analítico
Segunda, 16: “Nas ruas, contra o governo Dilma”, com fotos da Paulista – e o dado de que eram 1 milhão de pessoas e foto de Porto Alegre, com informação de 100 mil segundo a Brigada Militar
> Tom ambíguo: entre o informativo e o convocatório
Tendências
Pelo andar da carruagem e a depender das formas de reação do governo, a tendência é que os jornais recrudesçam o tom de críticas e cobranças, aderindo ao que entender ser uma narrativa geral dos brasileiros. Isto é: todos estão indignados, não toleram mais a gestão Dilma Rousseff (embora seu segundo tempo tenha começado há menos de três meses) e exigem mudanças políticas urgentes.
A meu ver, o tom deve se acirrar nos próximos dias porque os principais jornais decidiram tomar o partido da população mais ruidosa, cujo discurso pode não ser o dominante, mas é o mais audível. As narrativas se fazem não apenas de palavras de ordem e de sentidos circulantes, mas também dos volumes dos gritos, do alarde que provocam.
O governo Dilma Rousseff demonstra pouco poder de fogo no campo da comunicação. Não consegue fazer vigorar a sua narrativa, e o que é pior para ele: assume a narrativa da oposição na medida em que a própria presidente e alguns ministros vocalizam a tese do impeachment. Ao mencionar a palavra, trazem para seu vocabulário a narrativa do oponente e reforçam o coro que os combatem.
A meu ver, os jornais tendem a “ficar do lado” das camadas mais ruidosas, tentando fazer prevalecer a máxima de Millôr Fernandes de que imprensa é oposição. Claro que o autor quis se referir ao fato de que os meios de comunicação não devem ser reverentes ao poder e, por isso, se oporem aos centros de poder. Eu estaria exagerando se dissesse que os jornais assumiram as vozes golpistas e alugaram suas bocas para os partidos de oposição. Não tenho elementos palpáveis para afirmar isso. Mas isso pode mudar, dependendo das notícias que vamos colher nos próximos dias, dependendo do fortalecimento da insatisfação de camadas da população e da capacidade do governo de se comunicar com os diversos grupos interessados.
O governo não vai e não pode mudar as manchetes dos jornais com decretos. Mas pode colaborar para seu próprio sucesso produzindo notícias positivas para contigentes estratégicos. Os eleitores esperam por boas notícias, e nos primeiros dois meses elas foram escassas se não inexistentes. Os jornais, por sua vez, não podem jogar para a torcida. O espírito de manada é tão pernicioso que o ódio destilado nas últimas semanas.
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Rogério Christofoletti é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS