Quando camisas da seleção brasileira são o símbolo máximo de uma manifestação política, alguma coisa vai muito mal no que entendemos por política. E a responsabilidade, feliz ou infelizmente, não recai somente sobre aqueles que vestiram a amarelinha. É sinal de que a política brasileira atualmente se vê situada entre a novela e o futebol.
Num país em que a disputa eleitoral passou a ser retratada como um Fla-Flu, em que cada vez mais seus eleitores e simpatizantes se comportam como torcidas organizadas, repetindo caracterizações como “petralha” ou “coxinha” para designar campos ideológicos distintos, que esperar do futuro do país? Quando manifestantes são “pautados” por uma organização midiática que há muito não sabe mais separar sua área de entretenimento da sua cobertura jornalística, o que esperar? Quando delegados e procuradores se comportam como “redatores” de uma novela criminal e não mais investigam a não ser para pautar as manchetes do dia seguinte, sinto, mas vivemos uma experiência política sitiada. Enclausurada entre a interpretação “noveleira” que distingue o mundo em mocinhos e vilões, e a interpretação futebolística que torna a manifestação política a irracional paixão pelo “meu” time, definitivamente, a política não vai bem em nosso país.
Ou como explicar que um dia depois das manifestações contrárias ao governo e ao PT, os procuradores da Lava Jato deflagrem uma 10ª fase (ou seria melhor dizer, capítulo) da investigação, denominada “Que país é esse?”, cujo foco é o Partido dos Trabalhadores, o mesmo contestado um dia antes nas ruas? Que estranho calendário é esse que converge com perfeição investigações e manifestações, vazamentos e manchetes, tudo pelo bem de um enredo pré-definido? A cada fase da investigação, a PF vaza “pequenas cenas” para a imprensa que, com o devido cuidado de edição, as transmite aos seus telespectadores-cidadãos. É ou não é uma grande novela? Novela cujos “redatores”, eficientes meninos-prodígios paranaenses, têm conseguido retirar de cada capítulo o máximo de suspense. Ou não foi assim com a lista de Janot? Ou não é assim com o suspense da próxima delação? Vão chegar no Lula, na Dilma?
Eleitores-torcedores
Como numa novela, a coerência dos fatos pouco importa. Que importa se uma doação legal ao PT pelas empreiteiras investigadas será agora considerada “ilegal”, mesmo se a empreiteira, na mesma campanha, tenha doado legalmente a outros partidos, inclusive aos adversários do PT – ao PSDB, por exemplo? A coerência não importa quando aos meninos do Paraná é permitido fazer uso dessas licenças poéticas. Eles sabem bem que o que está em jogo não é a verdade dos fatos, mas a narrativa, uma narrativa fácil que consiga ser compreendida pelos telespectadores-cidadãos. O julgamento no Supremo será mera consequência da audiência, do Ibope que conseguirão até lá com os seus capítulos “bem escritos”.
Ora, o enredo é conhecido, é quase um “vale a pena ver de novo” de uma outra novela de muito sucesso. Um partido é o vilão. O país e seus “homens de bem”, que pagam os impostos, os mocinhos. Nessa trama, não importa se o galã não é tão mocinho assim, se os “homens de bem” molham a mão fora das telinhas. O importante é o que está sendo mostrado, transmitido ao vivo, compartilhado em selfies. As cenas são editadas de acordo com a linha do redator-chefe, um certo juiz que “corta” a cada vez que algum ator envolva o nome de um certo partido imaculado. A cena não prossegue e só resta arquivá-la. Sim, a política brasileira virou um grande espetáculo. Uma novela, de qualidade bastante questionável.
Não é de estranhar, portanto, que do outro lado da telinha, seja na velha TV ou no mais moderno smartphone, o telespectador-cidadão se comporte como torcida organizada. Instigado a apaixonar-se pelo mocinho e sentir ódio do vilão, ele só aguarda o palco para mostrar toda a sua paixão. As ruas do dia 15 de março foram isso: a mais pura representação de eleitores-torcedores. Não importa se o campeonato legal acabou. Eles conhecem este país. Sabem que é sempre possível apelar para o tapetão. E que time grande, poderoso, não cai, só os pequenos. É só entrar com recurso que, mesmo rebaixado há poucos meses pelo sufrágio universal, ele volta.
Fato e manipulação
Exibir com orgulho, assim, a camisa da Seleção brasileira é só a melhor imagem desse torcedor, cujo fanatismo pelo “seu time” não permite nenhuma outra camisa, nenhuma outra cor. Imagina um corintiano com as cores são-paulinas ou um vascaíno com as cores rubro-negras. Impossível. No mundo político transformado em torcida de futebol não há espaço para as diferenças, para o diferente. Só há espaço para o “meu time”. Afinal, eu visto Brasil. E quem não veste, perguntaríamos? O vilão, responderiam eles. Claro, o vilão é sempre inumano, a quem cabe somente a vingança. Um corintiano jamais entenderá mesmo como é possível torcer para o São Paulo e vice-versa, e é assim que temos pensado, infelizmente, a política. Vuvuzelas, panelas, apitos, tudo vale para a horda que cruza as ruas em fúria. E que não apareça ninguém com outra camisa pela frente, que a resposta não será nada amigável.
Estamos à beira de transformar a disputa política, democrática, saudável, na luta fratricida entre torcidas organizadas. Todos sabemos o final dessa história. Já assistimos, inúmeras vezes, a esse (des)encontro. Mas lavamos as mãos, preferimos acreditar numa espécie de fatalidade entre as torcidas a buscar soluções efetivas, racionais, que vão ao encontro das causas reais do problema.
A corrupção? Quem de fato está preocupado com ela? Entre a real, que conhecemos de longa data e que não separa mocinhos de bandidos, mas contamina todo o sistema, e a ficcional que nos é contada em capítulos de novela, preferimos, claro, essa última. Poderemos sempre ficar confortáveis no nosso lugar. Afinal de contas, os políticos e a política são só personagens, não é mesmo? Quem se importa se por trás dos personagens há os atores? Estamos acostumados a confundi-los, a xingar o vilão e abraçar a mocinha. Se essa ficção, portanto, tem impactos na realidade, pouco importa. Nossas consciências estão tranquilas em separar o mundo político em mocinhos e bandidos. É mais fácil, dá menos trabalho para o cérebro. As consequências dessa teledramaturgia na vida cotidiana, portanto, pouco importam. Se pessoas terão sua liberdade cerceada sem provas, se somos todos condenados até que se prove o contrário, pouco importa àqueles que só querem ver “o próximo capítulo” e se sentar confortavelmente no sofá, na certeza de que o mundo é mesmo só verde e amarelo.
Triste saber que o nosso sistema judicial-midiático mantém aferrados os torcedores desse jogo político, incapazes de compreender, fora dos limites teledramatúrgicos, o que é ficção e o que é realidade, o que é fato e o que é manipulação. Se não nos libertarmos desse quadro interpretativo, não há nenhuma civilização nos trópicos a nos esperar, como falara o mestre Darcy Ribeiro. Mas tão somente a mais arcaica barbárie.
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Vinicius B. Vicenzi é doutorando em Filosofia