“A privacidade é o novo nome da liberdade na Internet”, disse Jacob Appelbaum.
O tema virou a nova fronteira da agenda de direitos humanos, estimulado pelos avanços da tecnologia da informação e pelas denúncias de Edward Snowden sobre a vigilância em massa executada pelos Estados Unidos e outros governos. A Anistia Internacional lançou campanha a respeito do tema, que inclui uma pesquisa realizada em 13 países em seis continentes indicando alemães e brasileiros como os povos mais preocupados em proteger sua intimidade diante da espionagem digital – 2 em cada 3 internautas de ambos os países temem interferências de seus governos nas suas atividades online.
O que sabemos sobre vigilância governamental
O que sabemos hoje sobre a abrangência da atuação dos governos ocidentais é preocupante. Snowden afirma que quando trabalhou para a agência de segurança nacional americana (NSA). Gerenciou grandes programas de vigilância em massa na Internet e na telefonia, sem os devidos mecanismos de controle legislativo e judiciário. Snowden acusou grandes empresas de telecomunicações e de informática de colaborarem com as autoridades nessas iniciativas, fornecendo dados sobre seus clientes ou alterando seus produtos para facilitar o trabalho da NSA.
Segundo Snowden – e suas denúncias são corroboradas por jornalistas e pesquisadores como James Bamford e Bruce Schneier – o governo americano passou a espionar a correspondência e outros dados individuais de regiões inteiras. Por exemplo, monitorando todas as ligações telefônicas no Afeganistão, ou grandes quantidades de dados no Brasil, e não apenas de suspeitos, utilizando computadores para processar essas informações. Essa vigilância ocorreu inclusive contra cidadãos americanos, manipulando restrições legais ou contando com a ajuda de juízes coniventes.
Em grande medida esses mecanismos de espionagem eletrônica foram construídos ou ampliados após os atentados de 11 de setembro, quando a opinião pública e o Congresso se mostraram bastante dispostos a aceitar o aumento das prerrogativas do Executivo e a não fazer muitas perguntas sobre os detalhes dessas iniciativas. A prática começou com George W. Bush e continou com Barack Obama. O presidente democrata tem sido particularmente duro na perseguição aos whistleblowers – funcionários que denunciam publicamente abusos de autoridade e violações de direitos humanos. É o caso do próprio Snowden, do agente da CIA John Kiriakou e da soldado Chelsea Manning, todos processados ou presos, enquanto os responsáveis pelos crimes que eles trouxeram a público seguem impunes. Snowden só escapou da prisão porque está exilado na Rússia.
“Eu não fiz nada. Devo me preocupar?”
Sim. Todos temos aspectos de nossa intimidade que queremos compartilhar apenas com pessoas muito próximas, amigos ou família. Quem quer ver detalhes da sexualidade, da condição financeira divulgados para todos? Informações sobre o cotidiano, como a escola na qual estudam os filhos, os horários de trabalho e de lazer, podem ser bastante sensíveis para muitos, por razões de segurança.
Os programas governamentais de vigilância de massa oferecem a possibilidade assustadora de esses dados serem manipulados por autoridades que querem, por exemplo, intimidar jornalistas, cercear manifestantes ou criar restrições a outras atividades básicas da vida democrática. Essa, claro, já é a realidade de países com sistemas políticos autoritários como China, Irã ou Rússia, mas também é uma ameaça que pode corroer outras nações.
A ONU se tornou um fórum importante para as discussões sobre privacidade na internet, tendo-a reconhecido como um direito humano, basicamente a partir do desenvolvimento de ideias expressas em tratados e declarações que protegem integridade da casa, correspondência e outras esferas da intimidade. Por iniciativa da Alemanha e do Brasil, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou duas resoluções a respeito do tema, que são passos iniciais para construir um regime multilateral de garantias individuais contra a intromissão de Estados e empresas.
O Marco Civil da Internet no Brasil é um exemplo significativo de legislação nacional para proteger a privacidade online, assim como os debates sobre uma nova lei que se concentre em estabelecer regras para os dados pessoais. E também há a necessidade de maior debate e conscientização sobre o que compartilhamos online, muitas vezes sem a devida reflexão, acerca de nossa vida íntima. Em um mundo cada vez mais interconectado, essa é uma questão central.
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Maurício Santoro é assessor de direitos humanos da Anistia Internacional