Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo como dispositivo de poder

Seria possível substituir Os pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, por uma espécie bem brasileira de ave? Para isso, teríamos que descobrir sob qual superego essa espécie de ave viria assombrar o campo simbólico de um novo personagem, tal qual a jovem do filme que se apaixona por um homem que vive debaixo das saias da mãe obsessiva. Mas engana-se quem, com essas poucas pistas, aposta numa leitura psicanalítica sobre a política atual e o papel da mídia nesse processo. A proposta é outra. Ao invés de uma tríade, em que a mãe permanece na atmosfera mantendo vivo o tabu do incesto, pensemos em relações de poder, cuja potência depende de um assujeitamento cego, como se os olhos estivessem perfurados para não ver a violência de seus atos – como na trajetória final de Édipo Rei, de Sófocles.

Parece difícil interpretar de outra forma a sequência de cenas do vídeo “Por favor, chamem o alto comando”, postado no portal Pragmatismo Político, sobre as manifestações do último dia 15, onde o protagonista é “Carlinhos Metralha”, ex-torturador do Dops na ditadura militar, que segura um cartaz com os enunciados: “Quero ser ouvido pela omissão da verdade”. A omissão do “C”, para reforçar o duplo sentido de que Carlinhos não foi ouvido pela Comissão da Verdade, mostra, ao mesmo tempo, os jogos de verdade (os discursos que dão existência às verdades aos sujeitos implicados) pelos quais a confissão, que nos anos de chumbo se dava, quando alcançada, sob tortura, agora são alardeados à luz de “mais de 800 selfies”, como o próprio pop star da mobilização expressou. Teríamos nesta “celebridade” do dia 15 a ressonância dos discursos em voga, invadindo o imaginário social, de que nos anos de chumbo não havia corrupção, já que a confissão se dava nos porões da ditadura àqueles que levantavam suspeita sobre o regime.

Não encontraríamos nos tucanos à la Hitchcock a busca implacável para sangrar o governo atual e conduzir o povo – assim como Édipo, já cego, que decide sair cidade – a desistir da democracia? “Não quero que ela saia, quero sangrar a Dilma (…)”, disse Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), vice de Aécio Neves (PSDB-MG) na chapa presidencial de 2014, como consta na Folha de S.Paulo (9/3). É evidente que todo o discurso circula no sentido contrário ao impeachment, como a própria declaração do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, na mesma edição da Folha: “Não adianta nada tirar a presidente”. Mas, então, o que se busca com o apoio aos protestos que aconteceram no dia 15/3?

Hipótese estapafúrdia de que há um desejo que nega a própria democracia, se a análise for sustentada por lugares já dados, como os de que partidos – com a “missão” fortalecer o regime político atual – não comungariam com a ditadura. No caso do PSDB, basta ler o primeiro parágrafo do seu programa partidário, disponível no site da sigla: “Os fundadores do PSDB, que estiveram na linha de frente da resistência à ditadura, uniram-se num novo partido […]. Um sonho que é a soma de aspirações muito concretas: os brasileiros querem crescer, melhorar de vida, dar um futuro melhor a seus filhos. E querem fazê-lo em plena liberdade”.

Mas, se deixarmos tudo sob rasura, desde os princípios que orientam a ideologia dos partidos até a própria ideia de democracia, um outro sentido pode emergir, posto em circulação a partir dos jogos de poder que se estabeleceram. Nesse pressuposto, não haveria partido democrático nem democracia a priori. Não foi isto que fez o filósofo francês, Michel Foucault, em suas análises sobre a sociedade disciplinar, ao suspender todos os valores universais e princípios das democracias liberais?

Biopolítica e o assujeitamento da alma

Em História da Loucura, Foucault desenvolve sua tese, que poderia ser compreendida a partir da pergunta: será que a loucura existe? O que se lê no decorrer de seus escritos é um minucioso exame sobre se a história remeteria a algo como a loucura. Logo se observa que ela não existe. Se há um método de análise (apesar de todo perigo que este termo assuma em Foucault), é a suspensão de todos os universais para perseguir as práticas discursivas pelos quais um objeto passa a nascer, neste caso, o objeto do discurso é a loucura. Mas, o mesmo serviria para a democracia.

Suspendendo a existência além discurso, não caberia colocar sob rasura o que se admite a priori como o Estado, a sociedade, o soberano, o cidadão, exatamente como Foucault iniciou seu curso sobre o Nascimento da Biopolítica, ministrado de 1978-79?

O nascimento da biopolítica, no século 18, é a emergência de um domínio específico do conhecimento: a estatística. E deveria funcionar como um mapa subjetivo para a capturar os indivíduos, ou seja, um preciso dispositivo de assujeitamento do corpo e da alma. Ora, se a biopolítica é a maneira pela qual os governos buscavam racionalizar os problemas que se apresentavam na relação com o povo, o que se passaria a produzir definiria ambas as posições (governo e povo). É sobre o que é dado a ver que se tece uma trama discursiva que funciona como uma lanterna, cuja luz não simplesmente mostra um objeto, mas o fabrica. Suspende-se radicalmente toda possibilidade de essência.

Tomemos como exemplo o discurso da deputada Jandira Feghali, do PCdoB, do dia 17/3, ao dar visibilidade a que a grande mídia construiu as mobilizações do dia 15. A mídia, disse Jandira, não enfocou os carros de som que tocavam hinos do exército e davam voz a ex-torturadores. O mesmo fez o filósofo Vladimir Safatle, no texto bem humorado “Impeachment é pouco”: “Nunca vi uma manifestação tão anunciada com antecedência, um acontecimento tão preparado. Uma verdadeira notícia antes do fato. Depois de todo este trabalho, não tinha como dar errado.”

Ora, tanto o discurso da deputada quanto o do filósofo funcionam como uma espada produzindo faísca ao se chocar contra a posição discursiva da grande mídia. A mídia poderia ser interpretada, nesta leitura, como o céu sob o qual os tucanos hitchcockianos sobrevoam e observam a massa – seus seguidores – a protestarem palavras de ordem, muitas delas, fascistas.

Como não lembrar do conhecido prefácio de Foucault, “Anti-Édipo: uma introdução à vida não-fascista”, do livro Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, no qual ele pergunta: “Como caçar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento?” Ou, para colocar a pergunta na ordem do dia: como fazer para não se tornar fascista mesmo que o mundo, a nós apresentado (leia-se, o modo como a grande mídia apresenta a realidade), pareça o pior de todos, levando-nos a desejar medidas unitárias e totalizantes? Uma vida não-fascista prima pela multiplicidade, em contrapartida à fascista que busca o único e pressupõe totalizar seus princípios a qualquer preço.

Biopoder

É preciso colocar a democracia sob rasura para que ela possa ser reinventada num gesto político e estético. A maneira como as massas (aqui não cabe o termo multidão proposto por Negri e Hardt) ocuparam as ruas no último dia 15, para além de, em grande medida, serem eleitores do candidato derrotado Aécio Neves – como aponta pesquisa Datafolha publicada no jornal Folha de S.Paulo no dia 17/3 –, demarca uma relação de poder sobre a vida, um biopoder.

Não podemos isentar as posições dos integrantes do PSDB – e que se estende ao campo da oposição ao governo atual – dessa relação de intensificação entre os manifestantes que vão para as ruas, seus eleitores, com o apelo à volta da ditadura militar, como se fosse um desejo incrustado de impor um único modo de governar. Mesmo que na pesquisa Datafolha, outro dado relativize esta posição, o de que 85% dos entrevistados que estavam na Avenida Paulista consideram que a democracia é melhor que a ditadura, não minimiza em nada o fato de extremistas terem espaço e voz.

Se a biopolítica constitui uma racionalização sobre a arte de governar, o biopoder se define pela sua dupla face que se estende no poder sobre a vida e sobre a morte. Sobre a morte, o melhor exemplo, vindo de Foucault, talvez, seja o racismo. Mas, se o analista se dedicou às tecnologias de poder na “modernidade”, quando as escolas, os presídios, os manicômios etc. davam materialidade à sociedade disciplinar, hoje o que se percebe é uma maquinaria muito mais difusa na medida em que o efeito de verdade de seu discurso se dá na negação de sua própria afirmação. Qual maquinaria? A grande mídia e seu principal dispositivo – o jornalismo.

Dispositivo de produzir efeitos de verdade, que se constrói justamente no silenciamento dos bastidores pelos quais se decide o que deve ou não se tornar fato e sobre os vestígios selecionados para montar – fabricar – as partes sobre o que passará a existir – como se fosse um corpo orgânico independente da linguagem que o constituiu.

A história das Teorias do Jornalismo é o grande exemplo pelo qual toda uma epistemologia se desenvolve a partir de seu núcleo problemático – a autonomia dos jornalistas. Tirando a prototeoria, conhecida como Teoria do Espelho, o que se segue é um crescente debate (mesmo que subentendido em algumas delas) sobre a autonomia relativa dos jornalistas, sobretudo na relação com o mercado e a política. No entanto, o pacto com o consumidor de notícia ainda se dá sobre a fantasia da objetividade, tal qual inventada no século 19, sob a égide do positivismo, de que o pesquisador não pode se envolver com o objeto. Neste caso, o jornalista não pode derramar sobre sua produção sua própria subjetividade, o que distinguiria, assim, um texto construído a partir das evidencia dos fatos, a notícia, do texto opinativo.

Vejamos a observação do professor Rogério Christofoletti, publicada no site objETHOS (16/3), ao justapor manchetes e chamadas de capa de dez jornais brasileiros, de sábado (14/3) a segunda (16/3), no qual se pode perceber o “comedimento ao tratar das manifestações favoráveis ao governo e um tom celebrativo indisfarçável nos protestos de domingo. Como se houvesse alguma preocupação com os atos da sexta-feira, 13, e uma adesão apreendida aos movimentos de domingo. (…) não se pode deixar de lembrar que alguns jornais – como a Folha de S.Paulo e Estado de Minas – chegaram a convocar seus leitores para os atos de domingo”. Não teríamos aqui a política editorial sobredeterminando o discurso jornalístico?

Atribuição de sentidos

No segundo vídeo, compartilhado no portal Pragmatismo Político, um grupo de jovens do Instituto Plínio Correia de Oliveira coleta assinaturas para um abaixo-assinado tendo como argumento proteger a “família como Deus fez: um homem e uma mulher”. O responsável pela coleta de assinaturas, Daniel Martins, justifica que a ação é contra “um governo apoiando os ditos movimentos sociais que podem muito bem ser enquadrados na categoria de movimentos terroristas, como o MST e outros”.

Pedidos de intervenção militar, palavras contra a honra da presidente Dilma Rousseff, contra movimentos sociais etc. deram o tom dos protestos, sobretudo na Avenida Paulista, em São Paulo. “Não resolveria muito, mas pelo menos lavaríamos a alma por tirar essa bandida do governo”, falava uma manifestante em um desses vídeos que circula pelo Facebook. “Cada um aqui pode dizer: eu bani os comunistas desse país”, aparecia em outro. “Intervenção militar” estava escrito sobre uma prancha de surfe que era erguida para o alto.

Se concordamos com a leitura de Safatle, de que o fato (o que deveria dar materialidade às notícias) foi inventado antes de sua existência, a grande mídia constitui o espaço do espetáculo, por onde os tucanos podem voar e observar a energia conservadora que, na sua cara mais radical, deseja a intervenção militar a aceitar a política atual.

Os jogos de verdades pelo qual é sustentada essa posição raivosa, de não querer deixar viver o que é diferente, foi observado pelo professor e jornalista Bernardo Kucinski em 17/3, em entrevista ao programa Espaço Público, da TV Brasil. Para Kucinski, o que se viu no dia 15 foi “claramente o sucesso de uma articulação conservadora hegemonizando a classe média”, conseguindo “seduzir até pessoas que não são conservadoras, mas que também querem protestar”.

O ponto central, para o jornalista, é o ressentimento das elites brasileiras contra as políticas sociais do governo. Esse discurso conversador já vem sendo “há mais de dez anos alimentado, insuflado, cevado e ele, de repente, desagua numa manifestação desse tipo, onde inclusive você vê componentes de ódio, componentes de raiva, componentes irracionais de comportamento, o não desejo de discutir, a agressão substituindo a discussão”.

Parece que no céu, sobretudo da Avenida Paulista, tucanos demarcavam seu espaço, como se estivessem ali cumprindo uma missão que não pode vir à tona. Não há uma exaustiva crítica, plantada ano após ano, às políticas sociais, da distribuição de renda, do sistema de cotas, do casamento homoafetivo etc.?

Nesse cenário, a grande mídia é o espetáculo que cobriu o Brasil, de norte a sul, como se o olhar seletivo fosse o de uma nação inteira. Talvez devêssemos mesmo pensar num bioespetáculo. Ou seja, de como a espetacularização da vida mobiliza ou faz morrer a própria vida. Aqui, o discurso da mídia rompe completamente seu vínculo com o que faz referência, tornando-se o modo como seleciona e atribui sentidos aos fatos à verdade que mobiliza os consumidores.

Bioespetáculo, uma junção de Guy Debord com Michel Foucault? Talvez!

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José Isaías Venera é jornalista e professor universitário