Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A Alckmin o que é de Alckmin

De tempos em tempos, ocorrem coisas estranhas em nosso jornalismo. Por exemplo, durante os oito anos de estagnação econômica do governo FHC, não se bateu no ‘Príncipe dos sociólogos’ nem a décima parte do que se bateu em Lula por um mês de PIB em queda, no ano passado. Mais: os bons resultados obtidos por Lula quanto ao crescimento da economia são diminuídos e atribuídos a fatores circunstanciais, externos etc. Resumindo: quando Lula faz algo minimamente questionável, descem o pau. Quando faz o certo, não fez mais que a obrigação. Está terminantemente proibido elogiar o presidente Lula. É assim na imprensa e, por extensão, na chamada opinião pública.

Não vou aqui analisar as razões dessa visão torpe, preconceituosa e mistificadora. A coisa segue, mais ou menos, as mesmas razões de todas as deturpações típicas da grande imprensa, como as que vemos agora na cobertura internacional do mais novo conflito do Oriente Médio. Você escuta a todo momento que o motivo foi o seqüestro de 2 (dois!) soldados israelenses; que Israel está apenas ‘retaliando’, ou seja, respondendo a ataques que recebeu; você jura que os fanáticos são só os caras de Hezbollah, Fatah etc., afinal, Israel faz parte do mundo ‘civilizado’, aliado dos EUA, acreditam no mesmo Deus que nós, são, em suma, mais parecidos conosco. O bombardeio de mentiras (intencionais ou não) é tão acachapante e natural que você pensa que está havendo uma guerra, e não um massacre. Você esquece a absurda diferença de poderio bélico entre os dois lados, esquece de comparar as centenas de mortes no Líbano com as… peraí… quantas mortes houve mesmo em Israel? E pior, você acaba esquecendo que a ‘razão’ do conflito, o seqüestro de 2 (dois!) soldados judeus, resultou em centenas de mortes do outro lado, a imensa maioria deles, civis, muitas mulheres e crianças. Eis o conceito de justiça israelense e, de forma mais ampla, do mundo ocidental. Eis o conceito de justiça que deglutimos, todas as noites, diante do Jornal Nacional.

Eu poderia me alongar no assunto, mas não é preciso nem é o caso. Leiam, se quiserem, o excelente Deus é inocente, a imprensa não, de Carlos Dorneles. Fala sobre a questão do Iraque mas, no fundo, tudo não passa de variações de uma mesma visão de mundo, repercutida persistentemente por razões econômicas e culturais, realimentando-se de visões preconceituosas, num ciclo interminável que inclui as mesmas frases feitas, com algumas poucas variações estilísticas, e em que pensar, refletir, torna-se apenas um detalhe.

Complacência da imprensa

Voltando ao Brasil. A última moda, a pretexto dos ataques promovidos pelo PCC em São Paulo, é dizer que não se pode politizar a questão e tentar equalizar responsabilidades. Diante da cobertura omissa que a imprensa nos proporciona, o cidadão comum chega a esquecer que Lembo está ali só pra tapar buraco, que quem governou o estado nas últimas décadas foi o PSDB, foi Geraldo Alckmin, que agora quer se apresentar à nação como modelo de boa administração, de competência, de profissionalismo. Responda sinceramente: você já tinha ouvido falar de PCC antes de Alckmin? Claro que não. O PCC nasceu em 1993, na Cadeia Pública de Taubaté, interior de São Paulo. Até esta década era desconhecido da imensa maioria da população, paulista e nacional. Em 2001, quando Covas morreu e Alckmin caiu de pára-quedas no Palácio dos Bandeirantes, o PCC começou a se organizar fortemente e botar as manguinhas de fora, desafiando o estado.

A Constituição, em seu artigo 144, ao subordinar a estados e DF a gestão das polícias Civil e Militar, estabelece que o dever de organizar e administrar o combate ao crime compete, majoritariamente, aos governos estaduais. À União fica reservado o dever de, com a Polícia Federal e as Forças Armadas, combater o tráfico de drogas e outras modalidades de crimes articuladas a nível federal, crimes envolvendo a administração pública e o patrulhamento e defesa das fronteiras. Ou seja, foi exatamente a omissão e a incompetência de Alckmin, à frente das polícias e do sistema prisional paulista, que levaram ao fortalecimento do PCC.

Sem argumentos, o ex-governador Geraldo Alckmin levanta, em defesa de sua política de segurança, estatísticas mostrando queda na fuga de presos das penitenciárias paulistas. Cita um índice que, de resto, não diz absolutamente nada. Que importa o índice de fugas, quando esta organização criminosa conseguiu se organizar a tal ponto que os crimes são produzidos por quem está fora, comandado por quem está dentro? Como destaca Luís Nassif em seu blog, o problema é que nunca houve trabalho de inteligência policial nas penitenciárias, porque o secretário de Segurança era brigado com o secretário de Administração Penitenciária. Alckmin, o competente, não se preocupou em investigar (e deter) o crescimento do PCC, foi empurrando com a barriga até largar o governo do estado nas mãos do PFL. Logo depois a crise estourou de forma incontornável, e Alckmin contou com a complacência da grande imprensa para ‘esquecer’ que foi com ele, sob seu governo, que o caldo que agora entorna ganhou tempero e cozimento.

O melhor desempenho

A idéia do desserviço prestado pela imprensa no episódio fica mais clara quando vemos que, ao mesmo tempo em que optou por não apurar as responsabilidades de Alckmin, concentrando os holofotes em Cláudio Lembo e em Lula, repercutem sem qualquer crítica ou filtro insinuações de Jorge Bornhausen, José Serra e Alckmin de que o PT seria ligado ao PCC. A imprensa tem responsabilidade, tem obrigação de contextualizar, de mostrar que tal afirmação não só carece de verdade, como não é história nova.

Quem não nasceu ontem e acompanha política de outros tempos lembra que, em 1989, às vésperas das eleições, a oposição utilizou o mesmo expediente para prejudicar Lula e o PT diante da opinião pública: na apresentação dos seqüestradores de Abílio Diniz, camisetas e panfletos do PT plantados pela oposição, com a colaboração da polícia. Isso só não bastou. Ainda prepararam a acusação da ex-mulher (falsa) e a edição do debate na Globo. De tudo um pouco, para fazer de Collor, até então um desconhecido, o eleito. Mais tarde, ainda tentaram associar o PT aos seqüestradores de Washington Olivetto, às Farc… tudo falso. Mas o importante é incutir uma idéia, que se alimentará do próprio preconceito e da desinformação da sociedade. Os acusadores de agora já estão sendo processados por sua leviandade, mas o desmentido vem sempre tarde e impotente diante das ‘verdades’ consagradas pela opinião pública, que o diga o ex-dono da Escola Base.

Bem, para contrapor a irresponsabilidade de Alckmin tem-se exatamente o melhor desempenho em segurança pública em décadas de administrações federais, o de Lula. Em linhas gerais, embora os repasses aos estados tenham ficado em montante similar ao do governo FHC, Lula entregará cinco penitenciárias federais até o fim de seu governo. A primeira, em Catanduvas (PR), de segurança máxima, já está pronta e se prepara para receber os primeiros criminosos. Quantos presídios FHC construiu? Nenhum. Mas a maior revolução de Lula na área de segurança deu-se com a atuação da Polícia Federal. Nunca se viram tantas operações bem-sucedidas, contra quadrilhas de diversificadas expertises, que praticavam seus crimes há muitos governos, sem serem incomodadas. Lula escolheu um excelente ministro da Justiça, o advogado Márcio Thomaz Bastos, reaparelhou a PF e lhe deu autonomia política para revolver o lixo onde fosse necessário. O resultado, operações inteligentes, bem coordenadas, que desbarataram quadrilhas de sonegadores (com a prisão, pela primeira vez no país, de grandes empresários, como os donos da Daslu e da Schincariol); de fraudadores de concursos públicos, da Saúde, do INSS; de tráfico de drogas (com apreensões recordistas).

Várias lições

Os últimos exemplos dessa atuação primorosa foram a operação com o agente disfarçado que ‘cedeu’ o celular grampeado ao traficante Fernandinho Beira-mar e a prisão de agentes da própria PF, investigados por diversos tipos de corrupção. Tudo com muita autonomia (que nasce da vontade política) e aposta na inteligência (que nasce da ação competente). Evidentemente, assimilar esta idéia, para grande parte da nossa sociedade, envolve uma quebra brutal de paradigma, uma vez que se tentou desde sempre associar Lula (e em menor escala, o PT) diretamente à ignorância, pelo baixo grau de instrução. Esta é, aliás, uma confusão típica dos ignorantes: associar baixa escolaridade e falta de títulos acadêmicos a pouca inteligência. A coisa mais fácil, para um ser humano, é criar estereótipos; a mais difícil, destruí-los.

Na crise de São Paulo, de quebra, Lula ofereceu, a todo momento, todo tipo de ajuda a São Paulo, a despeito dos ataques sujos de que foi vítima. Fez o que podia fazer: liberou verbas extras emergenciais, e foi a ajuda da inteligência da PF que permitiu a elucidação e o desmantelamento das maiores ações do PCC. Mais não podia, pois qualquer intervenção direta, dentro da lei, só poderia ser feita a pedido do governador ou em situações de emergência nacional. Lula não fugiu às suas responsabilidades, enfrentou-as com vontade e inteligência, e sempre evitando utilizar a questão de forma politiqueira. Em nenhum momento ouviu-se dele qualquer ataque ao ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Mas o outro lado não pensou duas vezes antes de chafurdar nas acusações mais vis.

Desse episódio, tiramos várias lições: que o problema da (in)segurança deve ser tratado com a união apartidária de todas as forças da sociedade; que deve suscitar um plano emergencial de longo prazo, e não apenas promessas de campanha; e que a sociedade deve participar, cobrar, cada vez mais (eis os resultados dos julgamentos dos casos Richthofen e Embu-Guaçu). Mas é preciso, até para que possamos evitar cair nos mesmos erros, impedir qualquer tipo de mistificação e informar verdadeiramente, investigando responsabilidades. Não tratar o assunto segurança de forma politiqueira, eleitoreira é uma coisa; tapar o sol com a peneira e passar a mão na cabeça de autoridades flagrantemente irresponsáveis é outra bem diferente. Quem gostaria que o homem que deixou o PCC se organizar e desenvolver silenciosamente nos presídios paulistas, até se tornar o que se tornou, tomasse conta também da segurança de todo o país?

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Jornalista, Brasília