Tenho ouvido de coleguinhas da Radiobrás que está havendo uma burocratização precoce na operacionalização da montagem institucional que permeará a TV Pública sob comando do ministro das Comunicações, Franklin Martins.
Inicialmente, dizem, ocorreram reuniões entre cúpulas e bases para ditar o discurso tradicional sempre existente no serviço público: as discussões e a participação seriam amplas e predominantes – eis as promessas. Democratização completa para promover emergência de controvérsias, antagonismos, para tomadas de decisões consensuais. Bonito. No discurso. Na prática, a teoria estaria ficando na gaveta.
Ressaltam os coleguinhas que se cria uma estrutura em que na base estão os conselhos, seguidos de grupos mais restritos, até chegar à cúpula, formando um triângulo. Instalaram-se conselhos pelo país afora para discutirem a abrangência necessária do projeto. O objetivo seria o de buscar uma visão de nacionalidade por intermédio dos debates e elaboração dos trabalhos desenvolvidos pelos conselhos relativos à essência da comunicação pública desenvolvida no país ao longo de sua história. Esta, em seus aspectos positivos e negativos, sofreria uma filtragem para consecução de um modelo relativamente ideal de TV Pública.
Um organismo vivo
Nada de descobrir a roda, como destaca Franklin Martins. O modelo de TV pública se desenvolveu na Europa, no pós-guerrra, no processo de consolidação da social-democracia européia, cujo ícone mais destacadamente conhecido é a BBC de Londres. Caminharíamos para algo nesse sentido. Em setembro – disse Martins, em entrevista na TV estatal parananense, domingo, 17, no programa Brasil Nação, comandando pelo jornalista Beto Almeida – será encaminhado ao Congresso o projeto para apreciação, votação e aprovação democrática.
Seria resultado dos trabalhos produzidos nos conselhos ou depurado nas cúpulas, ganhando o perfil dessas, para adequar-se às orientações políticas maiores que poderiam surgir pelo meio do caminho, dominadas por interesses específicos e gerais que pululam no interior da máquina estatal? Incógnita, por enquanto.
Teoricamente, os conselhos dariam o norte, de modo que o projeto resultaria em um organismo vivo coordenado entre as suas diversas partes, constituindo um todo em movimento do real concreto no desenvolvimento do espírito público germinador contido na TV Pública. Os conselhos, no entanto, ressaltam coleguinhas da Radiobrás, podem virar apenas retórica. As contribuições – o levantamento das questões relativas à integração entre os poderes públicos na área de comunicação e a interatividade dinâmica e necessária das partes para que tudo funcione realmente como um organismo vivo, dialético, em suas contradições, ditadas pelos antagonismos próprios de um empreendimento de tal natureza – poderiam ser perdidas, ou não totalmente apreendidas, na prática.
Repetição da rigidez
Ocorreria – e esse é o grande perigo sobre o qual alertam os jornalistas da Radiobrás – um repeteco do espírito corporativo que domina o Estado brasileiro desde os primórdios das capitanias hereditárias, quando as ordenações colonialistas se instalaram para comandar a história política brasileira, algo que, de alguma forma, sobrevive na cúpula do aparelho decisório nacional até hoje, como se pode observar, ao vivo, neste momento, na Comissão de Ética do Senado, onde se aprecia o Caso Renan. Haveria, então, impossibilidade de explosão do verdadeiro espírito criativo.
Uma das reclamações mais ouvidas é a de que dos fóruns de discussões onde se programou a constituição de uma assembléia permanente de trocas de informações entre os conselhos, junto com os grupos centralizados, que orientam e abastecem de informações o ministro Franklin Martins, projeta-se, não a visão dialética, mas a mecanicista-positivista-cartesiana, decorrente do vício estatal de trabalhar verticalmente, em vez de horizontalmente, todos os problemas relacionados à organização do Estado. No campo da comunicação, tal vício poderia ganhar corpo e crescer de forma desmesurada, a ponto de inviabilizar o projeto na escala abrangente em que inicialmente está sendo esboçado.
O verticalismo proporciona, naturalmente, a visão de cima para baixo, que abre espaço, como sempre, à absorção de recomendações oriundas, predominantemente, dos grupos de interesses que dispõem de forças políticas no interior do Estado. Certamente, como jornalista de grande conhecimento dos mecanismos de poder no país, Franklin, que nos seus comentários políticos sempre criticou tal estrutura, estará atento às possibilidades de que ocorra um enrijecimento criativo. Repetir-se-iam, caso isso ocorresse, desestruturações que acabam sempre acontecendo nos projetos mais bem feitos, inicialmente, cheios de fantasia e abstração, mas que de concreto não apresentam nada mais do que a própria rigidez que a visão verticalista-maniqueista-mecanicista-cartesiana imprime.
Comitê permanente
Os propósitos de Franklin são, claro, característicos dos que buscam resultados fundamentalmente democráticos, mas se realmente as preocupações da turma da Radiobrás procederem, o consagrado repórter, ex-guerrilheiro, que a história brasileira registrou, pela bravura de ações políticas praticadas, poderá ser engolido pelos vícios do Estado, tão bem ressaltados, ultimamente, pelo deputado Ariosto Holanda (PS-CE), segundo o qual a visão predominante, dentro da máquina pública, é a do grande sobre o pequeno, do complicado sobre o simples, quando se abordam criticamente os assuntos pertinentes à transformação estrutural da cultura, da economia e da política nacionais. Sendo a TV Pública parte desse todo, estaria sujeita ao envolvimento em tal estrutura distorcida, que elimina os bons propósitos, subordinando-os aos interesses menores, antidemocráticos, em detrimentos dos maiores, democráticos. Os erros poderiam, dessa forma, ser repetidos.
Trata-se de cultivar a visão do grande investidor, do ponto de vista do capital, que domina o Estado nacional, na sua vertente financeira, por meio da qual as soluções são ditadas de forma antidemocrática, apressadas pelo ritmo da crise financeira estatal, tudo desembocando, naturalmente, na opção pelas medidas provisórias que estão enterrando a democracia nacional, desde o nascimento da Nova República.
Esse assunto, os convidados da TV Paranaense pretendiam debater com o ministro em programa de uma hora e meia de duração, mas ele, por conta de uma agenda apertada, teve que se retirar depois de meia hora. Não teceu maiores comentários relativamente à reivindicação favorável à criação de um comitê permanente de discussão para interação entre cúpula e base na operacionalização da TV Pública em processo de andamento. Esgotara-se, rapidamente, o tempo naquela oportunidade.
Romper o imobilismo
As preocupações gerais, portanto, são as de que o projeto – no qual o presidente Lula investe com determinação – correria o risco de sofrer os vais e vens semelhantes, por exemplo, aos que enfrentam o processo eleitoral em curso, no qual as discussões se voltam para a fixação de regras democraticamente contestáveis, dada a predisposição intrínseca dos interesses mesquinhos em fazer predominar os pontos de vista politicamente conservadores, contrários a uma democratização ampla da organização político partidária no país. Os conselhos em atuação gostariam de estar sendo utilizados como núcleos, vamos dizer assim, partidários, em torno dos quais seria possível envolver a sociedade de forma efetiva na discussão. Da mesma, surgiria a configuração, não ideal, mas possível, de uma política de comunicação radicalmente democrática. Infelizmente, pelo que dizem os coleguinhas da Radiobrás, não é o que se desenha, até agora.
A organização do Estado, repartida em grupos cujos interesses são vocalizações de elites que o dominam desde o descobrimento do país, há 507 anos, tende a ser o empecilho maior para o desenvolvimento do trabalho de Franklin Martins quanto aos objetivos que visa alcançar. Por isso, a classe jornalística, em torno da defesa intransigente de conteúdos públicos, em escala crescente, ofertados, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada, tem que ter a responsabilidade de ajudar o país a romper seu imobilismo no campo das comunicações, atualmente, dominado por grupos oligopolizados, que inviabilizam a democratização das informações – vista como jogo de contradições – de forma livre no espaço político nacional.
Viver é muito perigoso
O capitalismo oligopolizado, na esfera financeira internacional, que molda o comportamento das atividades econômicas em escala global, atua, igualmente, no campo das comunicações como resultado lógico do processo capitalista. Ocorre que os oligopólios, no limite de sua ação concentradora, tornam-se anti-sociais, reclamando a inevitável participação do Estado, a fim de corrigir distorções.
A mídia não está isenta disso. Como ela já atua nos moldes oligopolistas, a TV Pública, impulsionada pelo Estado, ganharia, com o tempo, para contrabalançar o oligopólio privado, configuração igualmente oligopolista. Seria a expressão da lógica dialética segundo a qual a tese, oligopólio privado, produz, sua antítese, oligopólio estatal, que, na seqüência, resultaria numa síntese caracterizada por uma comunicação resultante de um misto de oferta de produto estatal e privado com preponderância de conteúdo público, como fator essencial. Veneno de cobra, oligopólio público, contra veneno de cobra, oligopólio privado. Homeopatia.
A TV Pública, bancada pelo Estado, impulsionaria o oligopólio privado a adquirir, também, caráter preponderantemente público sobre o interesse privado, algo que inexiste, atualmente?
A crescente organização oligopolística do processo econômico no contexto globalizado se expressa, inteiramente, no campo das comunicações no país. Basta ver a discussão, sempre presente, impulsionada pela classe empresarial, favorável à abertura do setor ao capital externo. Como preponderaria o caráter público na televisão privada mediante o exemplo dado pela TV Pública? As regras das concessões públicas teriam que se adequar a um novo formato para atender a essa compatibilização necessária entre o público e o privado, capaz de criar nova cultura de comunicação, a ponto de mudar as características eminentemente mercadológicas hoje predominantes?
Certamente, não seria possível se a TV Pública, em primeiro lugar, não for TV aberta em seu sentido totalizante – aberta na veiculação, aberta na organização, aberta na programação, aberta na discussão, aberta na concepção, a começar pelas comissões, núcleos intermediários de discussão, constituindo-se em comitê permanente de debate, capaz de revirar de cabeça para baixo o espírito corporativista que o vício verticalista, inerente ao Estado corporativo, impõe.
O ministro Franklin Martins pode fazer história, mas pode também ser engolido por esse monstro burocrático que promete construir alternativas, mas, graças à sua própria inércia desintegradora, está sempre destruindo boas idéias. Vive de abstrações e fantasias, quando se fala, principalmente, em matéria de comunicação, de liberdade para a verdadeira criatividade, que só interação permanente entre o coletivo e o privado proporciona. Martins, sabendo do perigo que corre, não esqueceu de repetir Guimarães Rosa, pela boca do cumpade Miguelim, em Grande Sertão; Veredas: ‘Viver é muito perigoso’.
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Jornalista, Brasília, DF